Tortura  como cisão de corpo e mente

Por Leonardo Boff*  

Com o funcionamento da Comissão Memória e Verdade vem à tona com toda a sua barbárie a tortura como método sistemático do Estado ditatorial militar de enfrentar seus opositores. Já se estudaram detalhadamente os processos de desumanização do torturado e também do torturador. Este precisa reprimir sua própria humanidade para  praticar seu ato desumano. Não sem razão que muitos torturadores acabaram se suicidando por não aguentarem tanta perversidade.

Quero, entretanto, destacar um ponto nem sempre suscitado na discussão que foi muito bem analisado pelos psicanalistas, especialmente na Alemanha pós-nazista e entre nós por Hélio Peregrino, já falecido. O mais terrível da tortura política é o fato de que ela obriga o torturado a lutar contra si   mesmo. A tortura cinde a pessoa ao meio. Coloca a mente contra o corpo.  A mente quer ser fiel à causa dos companheiros, não quer, de forma alguma, entregá-los. O corpo, submetido à extrema intimidação e aviltamento, para ver-se livre da tortura, tende a falar e assim a fazer a vontade do torturador. Essa é a cisão. 

Mas há um ponto a se ressaltar: a pessoa torturada quando levada ao pânico e ao pavor pode ser vítima de mecanismos inconscientes de identificação com o agressor. Ao identificar-se com ele, consegue psicologicamente exorcizar, por um momento, o pânico e assim sobreviver. 

O torturado, que sucumbiu a esta desesperada contingência de autodefesa, incorpora sinistramente a figura do torturador. O torturador consegue abrir uma brecha na alma do torturado, alcança penetrar naquela última intimidade, lá onde moram os segredos mais sagrados e onde a pessoa alimenta seu mistério. Ultrapassa, portanto, os umbrais derradeiros da profundidade humana, para possuir a vítima e fazê-la um outro, alguém que acaba reconhecendo ser de fato subversivo, inimigo da pátria e da humanidade, um traidor da religião, um amaldiçoado por  Deus, um excomungado da Igreja, alguém da parte do demônio. Os  torturadores Albernaz e Fleury eram peritos nesta perversidade. Fleury disse diretamente ao frei Tito, como aparece no terrificante filme de Ratton Batismo de sangue, baseado no livro de Frei Betto com o mesmo nome, que deixaria nele marcas que jamais esqueceria. Efetivamente, conseguiu cindir-lhe a mente e o corpo e penetrar na sua mais profunda intimidade a ponto de ele, no exílio na França, sentir a todo momento a presença de seu algoz. Deixou um bilhete antes de tirar-se a vida: “Prefiro tirar minha vida a morrer”. 

Este tipo de tortura é especialmente perverso porque faz da desumanização o eixo de uma prática sistemática de agentes do Estado. Se a categoria anti-Cristo ainda significa alguma coisa, ela deve ser configurada dentro deste quadro infernal. Trata-se da completa subversão do humano e de suas referências sagradas. É seguramente um dos maiores crimes de lesa-humanidade que possam existir. Tais perversidades não podem cair sob anistia nenhuma. Os torturadores carregam em sua alma e em sua mente-testa o estigma de Caim. Por onde andarem, a vida os acusará porque violaram a sua suprema sacralidade.

E há ainda a tortura dos desparecidos, crucificando seus entes queridos. Por exemplo, houve uma guerrilha do Araguaia, até hoje não reconhecida totalmente pelos militares. Lá se cometeram todos os excessos: cortaram a cabeça e os dedos dos guerrilheiros mortos e os enviavam a Brasília para reconhecimento. Sumiram com seus cadáveres. Fizeram desparecer as vidas e pretendem agora apagar as mortes. E as famílias carregam  um pesadelo que não tem fim. Cada campainha que toca em casa funciona como um vento  a soprar as cinzas e reanimar a brasa da esperança, seguida de amarga decepção: ”Será que não é ele que está chegando?" Outros dizem: “Não mudemos de casa porque ele pode ainda chegar... e se nós não estivermos mais aqui para o abraço, o beijo, as lágrimas...que será dele?” 

Os torturadores e seus mandantes estão aí, agora ameaçados pelo esculacho do movimento Levante Popular da Juventude, que não lhes deixa a consciência descansar. A estes, quisera eu, como teólogo, perseguido mas não torturado, gritar-lhes ao ouvido o clamor de Jesus Cristo:”Da vossa geração será pedida a conta do sangue de todos os profetas, dos perseguidos e dos torturados, sangue derramado desde o princípio do mundo. Sim, vos asseguro que vos será pedida a conta deste sangue” (Lc 11,50-51). 

Poderá haver anistia pactuada dos homens. Mas não haverá anistia perante a consciência  e perante aquele que se apresentou sob a figura de um preso, torturado, executado na Cruz, Jesus, o Nazareno, feito Juiz Supremo, que julgará especialmente aqueles que violaram a humanidade mínima. Chegará o dia, supremo dia, em que todos os desparecidos aparecerão. Eles virão, como diz o Apocalipse, da grande tribulação da história. Sim, eles voltarão junto com o Vivente. E então não haverá mais espera nem palpitação dos corações. O Vivente, também um dia torturado,  anulará todas as distâncias, enxugará todas as lágrimas e inaugurará o Reino dos sacrificados e desaparecidos, agora vivos, libertos e encontrados. Então será definitivamente verdadeiro: ”Nunca mais uma ditadura. Nunca mais desaparecidos. Nunca mais a tortura”.

* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor. -  lboff@leonardoboff.com