Em busca de minha amiga imaginária

Por Maria Lucia Dahl

Fui dormir no meu quarto, no térreo lá de casa, e fiquei ouvindo o meu neto, de 7 anos, falando sozinho e contando histórias. Então, me lembrei imediatamente da minha infância, que fica encostada na porta, louca pra eu abri-la por um pretexto qualquer, o que não falta jamais. Então lá vem a minha infância saindo do meu  inconsciente e tirando o meu sono, me contando suas antigas histórias.

Boicotada por minha irmã mais velha, que me impedia de participar de suas brincadeiras e amizades, por me achar pirralha, busquei na minha fantasia uma amiga inseparável que se chamava Vêla, por que eu não sei. Não me recordo de suas características físicas, pois criança não se liga à forma, mas ao conteúdo. Mas sei que as características principais de Vêla eram: ser mais velha do que eu, portanto mais importante, e estar sempre disposta a brincar.

Combinávamos em tudo. Era uma excelente companhia que transformou em liberdade a minha solidão. Desde que a descobri, nunca mais precisei de companhia pra ir a lugar nenhum. Conversávamos sobre tudo, enquanto nos equilibrávamos no murinho de cimento do jardim. Observávamos as formigas e os formigueiros e tínhamos uma caixa de papelão cheia de vira-bolas e joaninhas. Não gostávamos das lesmas, pois uma delas muito me assustou quando caiu de dentro da torneira da pia, em cima das minhas mãos. Das minhocas, também não. Davam aflição.

Também brincávamos de voar por cima da escadaria da varanda. Até hoje não sei como funcionava essa brincadeira. Sei que fechava os olhos no último degrau da escada, e quando abria, estava no primeiro. Um dia quis voar da janela do meu quarto, mas Vêla, mais prudente que eu, avisou que mamãe ficaria furiosa se eu me machucasse. Por isso voávamos rasteirinho, de mãos dadas pelo jardim. Só os cachorros eram bem-vindos e podiam participar das nossas brincadeiras. Muitas vezes desprezava outras crianças nas festinhas de aniversário pra me encontrar com Vêla  atrás das cortinas da sala de jantar.

Também passeávamos pelos canteiros de antúrios estourando as sementes de marias-sem vergonha. Às vezes jogávamos bola no quarto, como o meu neto faz agora, e quando chovia, eu lia pra ela, Monteiro Lobato, pois Vêla era muito intuitiva e só gostava de aprender alguma coisa com a experiência.

Com o tempo, Vêla passou a falar inglês influenciada pelos filmes da Metro que ia ver comigo. E como nesses filmes também arranjou um namorado que ela beijava com a boca colada no espelho do banheiro. Mas quando eu arranjei meu primeiro namorado, de verdade, ciumenta, fugiu de mim. Fiquei muito tempo sem vê-la. Enjoei do namorado, tinha vergonha de tudo. Então, sem Vêla, sentia um tédio terrível e não tinha companhia  pra passear no jardim. Falar com quem? Então pegava um livro da Narizinho pra me divertir, mas não adiantava, me dava sono. Dormia.

Então tomei uma providencia: saí com muita dificuldade da cama, coloquei meus óculos escuros por causa do sol, pois não estava mais habituada a ele, e comecei uma busca ferrenha atrás de Vêla. Passei novamente a ir à praia, fazer ginástica, nadar, mas voltava pra casa vazia, pensando: "Esse dia não valeu. Tomara que comece logo um outro." Era difícil acordar sem tê-la ao meu lado. Mas, num dia mais luminoso, resolvi esquecer de minha amiga imaginária: "Ah, é? Tá fazendo doce? Pois vou me divertir sozinha!". Foi quando ouvi suas gargalhadas brincando com a verdade no fundo do poço.

Desde esse dia não me abandonou mais Temos viajado por esse mundo de Deus! Até já a apresentei a alguns amigos mais íntimos.

E às vezes ainda saio das festas mais barulhentas pra encontrar com ela numa ilha deserta e seguimos, contentes, o caminho do mar.