Dono - e piloto - de submersível menosprezou alertas de que colocava vidas em risco

Especialista pediu repetidamente à OceanGate que buscasse a certificação para o Titan antes de usá-lo para passeios comerciais

Por GABRIEL MANSUR

Submersível levava cinco pessoas

O norte-americano Stockton Rush, dono da OceanGate e piloto do submersível que implodiu a quase quatro mil metros de profundidade, provavelmente no domingo passado (18), ignorou uma série de alertas sobre a insegurança da embarcação, segundo troca de e-mails obtida pela rede britânica BBC.

As mensagens estão em e-mails trocados por Rush e Rob McCallum, um importante especialista em exploração em alto mar. Em 2018, o oceanógrafo chegou a acusar o empresário de colocar a vida de seus clientes em risco. Ele ainda o orientou a suspender as expedições com o Titan - nome do submarino - até que o veículo recebesse certificações de todos os órgãos independentes.

Veja a conversa

"Acho que você está colocando a si mesmo e a seus clientes em uma dinâmica perigosa. "Em sua corrida ao Titanic, você está espelhando o grito de guerra famoso: '[a embarcação] é inafundável'", escreveu McCallum em referência à fama do transatlântico antes de naufragar.

McCallum pediu repetidamente à empresa que buscasse a certificação para o Titan antes de usá-lo para passeios comerciais. A embarcação, porém, nunca foi certificada ou avaliada por autoridades ou órgãos independentes.

"Até que um submarino seja classificado, testado e certificado, ele não deve ser usado para operações comerciais de mergulho profundo. Imploro que tomem todo o cuidado em seus testes e testes no mar e sejam muito, muito conservadores. Por mais que eu aprecie o empreendedorismo e a inovação, você está potencialmente colocando todo um setor em risco", escreveu McCallum em um e-mail.

Em sua resposta alguns dias depois, Rush defendeu seu negócio e suas credenciais e questionou a estrutura existente em torno de expedições em alto mar. Ele disse que a "abordagem inovadora e focada em engenharia da OceanGate vai contra a ortodoxia de submersíveis, mas essa é a natureza da inovação".

A OceanGate, que operava o submarino, dizia que o veículo era inovador. Por isso, alegava a empresa, a embarcação não atendia aos padrões de certificação. Em resposta a McCallum, o empresário Rush disse que estava cansado de lidar com "representantes da indústria que usam argumentos de segurança para impedir a inovação".

"Ouvimos os gritos infundados de 'você vai matar alguém' com muita frequência", escreveu ele. "Tomo isso como um sério insulto pessoal".

McCallum, então, respondeu: "Serão testes no mar que determinarão se o veículo pode lidar com o que você pretende fazer com ele novamente; tome cuidado e mantenha-se seguro. Há muito mais em jogo do que o Titan e o Titanic.”

A troca tensa terminou depois que os advogados da OceanGate ameaçaram entrar com uma ação na Justiça contra McCallum por importunação. A empresa não comentou a troca de e-mail.

Mais alertas

McCallum estava entre mais de três dúzias de líderes e especialistas do setor que assinaram uma carta de 2018 para Rush, alertando que a abordagem da OceanGate poderia levar a problemas "catastróficos". Na mesma toada, o comitê de veículos subaquáticos da Sociedade de Tecnologia Marítima, grupo que reúne líderes da indústria de embarcações submersíveis, apontou possíveis consequências "catastróficas" em decorrência da abordagem experimental.

"Quando a OceanGate foi fundada, seu objetivo era buscar o mais alto nível de inovação no projeto e na operação de submersíveis tripulados. Por definição, a inovação está fora de um sistema já aceito", rebateu a companhia depois da carta, em uma publicação intitulada "Por que o Titan não é certificado?".

Outros pesquisadores questionaram a segurança do Titan e como as expedições em alto mar do setor privado são regulamentadas. Preocupações foram levantadas sobre o material de fibra de carbono usado para construí-lo.

"A indústria tenta há vários anos fazer com que Stockton Rush interrompa seu programa por dois motivos: uma é que a fibra de carbono não é um material aceitável; a outra é que este era o único submersível no mundo fazendo trabalho comercial sem passar por certificação. Ele não foi certificado por uma agência independente", diz McCallum, que dirige sua própria empresa de expedições oceânicas, à BBC.

Submersíveis podem ser certificados por organizações marítimas - por exemplo, pelo American Bureau of Shipping (ABS) ou pelo DNV (uma organização global de acreditação com sede na Noruega), entre outros. Isso significa essencialmente que o veículo deve atender a certos padrões em aspectos como estabilidade, resistência, segurança e desempenho. Mas esse processo não é obrigatório.

Em uma postagem de blog em 2019, a empresa disse que a maneira como foi estruturada estava fora desse “sistema” mas que isso não significava que a OceanGate não atendesse “aos padrões onde eles se aplicam".

"Stockton se imaginava como um empreendedor contra o ‘sistema’", diz McCallum. "Ele gostava de pensar fora da caixa, não gostava de ser restringido por regras. Mas existem regras por um motivo - e também existem princípios sólidos de engenharia e as leis da física."

Ele afirma que ninguém deveria ter viajado no submarino Titan.

"Se você se afastar todos princípios de engenharia, todos baseados em experiências arduamente conquistadas, há um preço a pagar, e é um preço terrível. Portanto, nunca deve ser permitido que isso aconteça novamente. Não deveria ter sido permitido que isso acontecesse em primeiro lugar", concluiu.

Entenda

Os destroços do submarino Titan foram encontrados nesta quinta (22). O estado das peças é compatível com uma perda de pressão do veículo, o que teria provocado uma "implosão catastrófica", provavelmente de milissegundos, segundo a Guarda Costeira dos Estados Unidos.

O submarino perdeu contato com a superfície 1h45 após o início do mergulho. Segundo o porta-voz da Guarda Costeira, ainda é cedo para falar quando exatamente ocorreu a implosão. Especialistas dos EUA e do Canadá permanecem no mar nesta sexta-feira investigando as causas do incidente.

O submarino era dirigido por um controle semelhante ao de videogames, e seu interior era apertado e simples, com três monitores, um botão, uma janela pequena e um banheiro improvisado.

Cinco pessoas estavam a bordo para uma expedição até os restos do Titanic, que afundou em sua viagem inaugural após bater num iceberg, em 1912. Os destroços do transatlântico, cuja tragédia matou mais de 1.500 pessoas, estão 1.450 km a leste de Cape Cod, no estado americano de Massachusetts, e 640 km ao sul de St. John, no Canadá.

Rush fundou a OceanGate em 2009, e a empresa oferecia aos clientes viagens em alto mar a bordo do Titan, incluindo a visita ao naufrágio do Titanic, por um preço de 250 mil dólares (cerca de R$ 1,1 milhão).

Além de Stockton Rush, estavam a bordo do Titan o bilionário britânico Hamish Harding, 58, presidente-executivo da empresa Action Aviation; o empresário paquistanês Shahzada Dawood, 48, vice-presidente do conglomerado Engro, e seu filho Suleman Dawood, 19; além do francês Paul-Henri Nargeolet, 77, mergulhador e considerado o maior especialista no Titanic.