É preciso que se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres, como já começou a se estabelecer nesta Casa, por parte das mulheres parlamentares da Arena, o boicote ao militarismo. Vem aí o 7 de setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile. Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais”.
Se a ditadura militar, instaurado em 1964, já vinha cerceando a liberdade de muita gente, o discurso proferido pelo deputado e jornalista Márcio Moreira Alves (MDB), no dia 3 de setembro de 1968, não passaria em branco. O tom rebelde do parlamentar da oposição foi apontado como o grande motivador do AI-5, o mais duro ato institucional, decretado meses depois.
Carioca de raízes mineiras, Marcito, como era chamado pelos amigos, foi um dos primeiros parlamentares cassados pela nova medida de força dos militares. Os discursos – no plural, porque, como lembra o historiador Carlos Fico, foram dois, e não um como se diz – foram qualificados como uma afronta pelo grupo de apoio ao regime. “O deputado discursou na Câmara quatro dias depois da invasão da Universidade de Brasília, condenando-a. No dia seguinte, Márcio voltou à carga: fez novo discurso sugerindo que as moças, que dançariam com os cadetes nos bailes das escolas militares dali a poucos dias, no 7 de setembro, os boicotassem”, contou Fico.
Anos depois, restabelecida a democracia, Marcito contou o que o inspirara. “Foi um discurso de cinco minutos, baseado na história da Lisístrata, uma peça sobre as mulheres de Atenas, que se recusam a encontrar com os maridos enquanto eles não voltassem e lutassem contra Esparta”, disse, em depoimento no documentário ‘O Dia que Não Existiu’, da TV Cultura e TV Câmara. “Não podia imaginar que fosse ter a importância que lhe deram.”
Para Carlos Fico, “não foram os discursos de Márcio Moreira Alves que levaram ao AI-5.” Eles serviram de pretexto para que os militares e os civis mais radicais colocassem as mangas de fora. “[Os discursos] foram usados para pressionar o [marechal] Costa e Silva a decretar o novo ato institucional que ele havia se negado a assinar em junho de 1968: os militares se diziam ofendidos pelas palavras do deputado”, conta Fico.
Antes do ato, Marcito ainda sofreria com a tentativa de cassação do seu mandato parlamentar. O pedido encaminhado pelo Supremo Tribunal Federal no dia 12 de outubro foi vetado na Câmara dos Deputados levando, de um lado, o alívio a Moreira Alves, e, do outro, uma derrota ainda mais amarga para a linha dura militar.
“Os ministros militares queriam punir Márcio, mas não podiam cassá-lo sumariamente por não estar em vigor nenhum ato. O governo precisou pedir licença à Câmara para processá-lo. Foi um processo relativamente longo”, comentou Fico. “Mesmo na ditadura, a Constituição protegia os parlamentares com imunidade quando de discursos no exercício do mandato.”
O plenário rejeitou o pedido por 75 votos de diferença – 216 deputados o rejeitaram, contra 141 que o aprovaram e 12 abstenções. Um dia depois, o Brasil entrou em um dos períodos mais duros de repressão.
“A votação durou horas. A deputada oposicionista Ivete Vargas, posicionada ao lado da cabine de votação, contabilizava cada voto contrário dizendo: ‘Este também é nosso!’ Quando o resultado foi proclamado, as galerias e os deputados exultaram, cantando o Hino Nacional, julgando que o Congresso havia afirmado sua autonomia e força”, conta Fico. “Mas, após a votação, todos sabiam que a ditadura reagiria. Alguns parlamentares sacaram dinheiro de suas contas da agência do Banco do Brasil no prédio do Congresso. Márcio Moreira Alves, com a ajuda de amigos, fugiu.”
“Apagado o meu nome, apagados os nomes de quase todos nós da memória de todos os brasileiros, nela ficará, intacta, a decisão que em breve a Câmara tomará. Não se lembrarão os pósteros do deputado cuja liberdade de exprimir da tribuna o seu pensamento é hoje contestada. Saberão todavia dizer se o parlamento a que pertenceu manteve a prerrogativa da inviolabilidade ou se dela abriu mão”, discursou o deputado antes de dar início ao plenário da Câmara.
Aos 32 anos, Moreira Alves seguiu para o exílio, ainda em dezembro de 68, onde permaneceu até 1979, quando voltou para o Brasil, após a anistia política. Instalou-se, primeiro, no Chile, e em 1971, transferiu-se para a França. Durante esse período, percorreu a Venezuela, a Colômbia, o Equador, o Peru, a Argentina, a Bolívia, o México e os Estados Unidos, fazendo conferências em mais de 40 universidades. Em 1974, foi para Lisboa, onde viveu até seu retorno.
No Brasil, tentou retomar à carreira parlamentar, sem sucesso, e voltou às suas origens, o jornalismo. Se tornou comentarista político e manteve uma coluna diária no jornal ‘O Globo’ durante dez anos. Faleceu aos 72 anos, no dia 3 de abril de 2009, após um longo período de internação no Hospital Samaritano, no Rio, deixando três filhos.
“O regime detestava Márcio Moreira Alves, jornalista do ‘Correio da Manhã’ que se celebrizara por denunciar a prática de tortura logo após o golpe de Estado de 1964”, diz Carlos Fico.