Museu Nacional: uma autoimolação de nossa (des)memória
Na semana em que recordamos os 196 anos de Independência, a dantesca cena de nossa mais antiga instituição histórico-científica sendo lambida rapidamente pelas chamas é um símbolo cabal do que somos e nos tornamos. Ele não era apenas um colosso na paisagem urbana carioca; ele estava encravado também em nossa memória histórica. Tendo sido erguido no Brasil Colônia por braço escravo, ele se tornou detentor de grande parte da memória deste país que se ergue do Chuí ao Monte Caburaí, e da Ponta do Seixas à Serra da Contamana. Estava registrada nele não apenas uma larga parte da história nacional, como também importantes coleções de história natural e de artefatos civilizacionais (arqueológicos, egípcios e antropológicos). Defronte de toda a história transformada em cinzas, celebremos as exéquias de nossa indiferença ao passado e façamos um réquiem da falecida memória histórica.
Em uma realidade que imita ironicamente a ficção, a semana da Independência parece comemorar-se em um destino trágico; mas não esqueçamos, a tragédia era, como quase sempre, previsível e anunciada. Ela revela, antes de tudo, nossa negligência política. Nas comemorações de 200 anos do Museu, nenhum ministro esteve presente; mas, claro, diante de suas cinzas, todos políticos farão loas à sua gloriosa existência. Contudo, à revelia do relato bíblico da sarça ardente, o fogo que consumiu o árduo e afetivo trabalho de inúmeros pesquisadores, funcionários e estudantes consumou o vaticínio “do pó vieste, ao pó retornarás”. Diferentemente de Fênix, o acervo não ressurgirá das cinzas; e tampouco o som da trombeta anunciará o ressurgimento em carne de uma cultura jazida no sono eterno do esquecimento. Não se recompõe um acervo dizimado pelas chamas; não se constrói um futuro que faz do passado um mero apetrecho alegórico; e não se conscientiza uma população com oportunismo barato que faz das tragédias coletivas palanque de vômitos fraseológicos.
A perda de inumeráveis anos de histórica natural, nacional e civilizacional não apenas condenou ao silêncio sepulcral o grito histórico que se exibia nas peças em exposição; ela pulverizou também um instrumento de educação das novas gerações. Quando não conseguimos preservar nosso passado, legamos ignorância ao futuro, perpetuando a estupidez autocomplacente daqueles que dizem, hoje, com desprezo, que “quem vive de passado é museu”. Tal afeição idiota ao instante lembra-nos do diagnóstico que Sérgio Paulo Rouanet fez da modernização autoritária brasileira: por um anjo torto, optamos por trocar uma oligarquia superficialmente culta por uma grande democracia do analfabetismo (cultural e histórico) universal.
O fim do museu é apenas mais um em uma coleção infindável: a Capela Imperial; o Palácio Monroe; o Museu do Índio; o Morro do Castelo; o Memorial da América Latina; e o Museu da Língua Portuguesa. É fato certo, ele não será o último a conhecer o crepúsculo da história, e muitos de nós sabe quais são os próximos candidatos a tragédias anunciadas. Se nossos governantes, com cortes de verbas e escolhas orçamentárias, são contumazes homicidas culturais, não esqueçamos que eles expressam nosso descaso coletivo. A tarefa de Sísifo, presa no ciclo infernal do construir e esquecer, é nossa constante incômoda. Qualquer povo só persevera em seu ser pelo esforço coletivo em preservação da memória frente à inapelável corrupção temporal; enquanto formos uma população inerte às heranças, nenhuma ação política será capaz de reverter a forma como fazemos nossa história por sobre o escombro de nossos antepassados e por sob a hipocrisia de nossos esquecimentos.
Sabemos que o fogo é um meio por excelência de oferenda sacrificial, pelo qual se pode santificar o objeto sacrificado fazendo sua fumaça chegar ao destinatário. Infelizmente estamos privados de crer, em má consciência, que a consumação do Museu Nacional tenha sido um dispêndio sagrado. Mas, diante da vertigem da falta de sentido, podemos buscar refúgio em uma fábula de formação nacional: que creiamos que o museu se pôs a autoimolar-se para nos despertar do sono de nossa desmemória, orientando-nos a uma reconciliação consciente com nossa história e com um projeto de país. Desesperadamente, creiamos que aí está o bom fim de nosso museu, feito como sinal de alerta para uma autêntica Independência nacional.
* Livre pesquisador do Ateliê de Humanidades, professor de escola pública e doutorando em literatura da PUC-RJ
** Doutor em Sociologia (Iesp-Uerj) e diretor do Ateliê de Humanidades