Memória, ciência e nação
Uma nação são ideias, valores e memória compartilhados. Esse compartilhamento propicia aos indivíduos um sentimento de identidade, de pertencimento. Quando os indivíduos se reconhecem como membros de uma comunidade, leis e regras são respeitadas. Nosso país existe há 196 anos, mas a nação brasileira está ainda em construção. A trágica e irreparável perda do Museu Nacional, carregada de tanto simbolismo, significa muitos passos atrás no longo caminho dos brasileiros rumo à construção de sua nação. Discute-se agora responsabilidades pela perda, mas o que se pode afirmar com certeza é que a preservação da nossa memória ainda tem pouco valor entre nós.
Um discurso semelhante pode ser feito sobre a ciência. Assim como a memória, o conhecimento científico é um processo cumulativo, adquirido pelo trabalho diário, árduo e anônimo de milhares de pesquisadores. O desenvolvimento e o progresso das civilizações depende da preservação e do acúmulo desse patrimônio imaterial. Olhemos a história moderna, desde o início das grandes navegações. Foram os europeus que conquistaram e colonizaram as Américas, e não os incas e astecas que conquistaram a Europa. Nos últimos séculos, o Ocidente, onde a ciência moderna floresceu, prevaleceu sobre as civilizações milenares do Oriente.
O conhecimento científico está na base do desenvolvimento tecnológico e da inovação. O entendimento dessa conexão entre ciência e tecnologia faz com que o orçamento para pesquisa científica nos países ricos seja preservado mesmo em períodos de crise. Algo que aqui no Brasil precisamos aprender.
É comum no Brasil a ideia de que, num país com poucos recursos, os cientistas deveriam se dedicar ao estudo dos grandes problemas nacionais, e que a pesquisas produzam resultados práticos no curto prazo. Estudos que levem a uma vacina contra o zika são obviamente importantes, mas há que se reconhecer que a pesquisa em ciência básica é o principal motor do desenvolvimento tecnológico. Vivemos num mundo baseado na eletrônica, que é a arte de conduzir elétrons para onde e de que forma queremos. Não haveria eletrônica sem a mecânica quântica, uma teoria desenvolvida há cerca de 100 anos a partir do estudo de temas sem nenhuma utilidade ou aplicação prática na época: a radiação de corpo negro e a estrutura atômica.
A ciência contemporânea é uma atividade cada vez mais supranacional. Grandes experimentos são necessários, por exemplo, para investigar o Cosmo ou a estrutura mais elementar da matéria. Esses experimentos são realizados por colaborações entre vários países e requerem pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias. Tenho o privilégio de fazer parte de um dos maiores experimentos que a humanidade criou: o LHC, no Cern, na Suíça. No LHC há equipes brasileiras envolvidas em quase todos os projetos. Participo do experimento LHCb, que estuda a prevalência da matéria sobre a antimatéria no Universo.
Mais de 10 anos foram necessários para a construção do LHC, do LHCb e dos outros experimentos do Cern. Projetos dessa natureza demandam financiamento contínuo, possível em países onde se fazem planejamentos de longo prazo. No Brasil, onde a cultura do curto prazo, do imediatismo, ainda é dominante, o orçamento para a ciência é quase sempre um dos primeiros da lista de cortes quando é preciso ajustar as contas públicas. Precisamos aprender a planejar: quais as nossas metas para saneamento e educação nos próximos 20 anos? Que áreas da Física, Biologia, Astronomia, Química devem ser priorizadas?
Apesar de participar dos seus experimentos, o Brasil ainda não é membro do Cern, como o são Romênia, Paquistão, Lituânia. Ser membro do Cern tem, claro, um custo, mas abre muitas oportunidades: encomendas são sempre feitas às indústrias dos países membros. A associação do Brasil ao Cern, iniciada há alguns anos, precisa da aprovação do Congresso, onde esse projeto encontra-se esquecido em alguma gaveta.
Nós, brasileiros, ainda não temos um projeto de nação. Somos, ainda, apenas um país. Para nos tornamos uma nação que inclua todos os brasileiros, precisamos aprender a preservar nossa memória e a perseverar na construção do nosso patrimônio científico.
* Pesquisador titular do CBPF