Summum jus, summa injuria

Por Vinícius Pacheco Fluminhan*

A separação entre os Poderes da República é uma importante conquista para as liberdades civis. A ideia da tripartição (legislativo, executivo e judiciário) está associada à convivência harmônica dos poderes, mas preservando a independência funcional e a fiscalização mútua entre eles. O sistema de "freios e contrapesos" que decorre da tripartição é tão essencial para o estado democrático de direito que a Constituição de 1988 o considerou uma cláusula pétrea, tornando-o assim uma regra inalterável por emenda constitucional.

Não obstante a indiscutível necessidade de ajustes nas regras das aposentadorias e de outros benefícios, alguns detalhes veiculados pela proposta de reforma previdenciária merecem maior reflexão da sociedade. Um deles é a pretensão de alterar a redação do art. 195, §5º da Constituição para impedir que o Poder Judiciário, no exercício de suas funções, amplie benefícios e serviços no âmbito de toda a Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência Social).

A PEC 6/2019 parte da premissa de que, sem a provisão de recursos para tais ampliações, não podem os Juízes e Tribunais do país flexibilizarem a lei nesta matéria. Em outras palavras, os Juízes ficarão impedidos de flexibilizar o eventual rigor da Lei se isso implicar gastos não programados no orçamento. Ocorre, entretanto, que o papel do Poder Judiciário tem sido marcante no aprimoramento do Direito da Seguridade Social nas últimas décadas.

No âmbito da Saúde, por exemplo, o fornecimento de medicamentos por determinação judicial tem sido há muito tempo o impulso necessário para pressionar o Executivo e o Legislativo a melhorarem o atendimento aos usuários do SUS. É claro que os gestores da saúde pública se incomodam com as decisões judiciais, especialmente quando eventuais exageros chegam ao ponto de atrapalhar todo o seu planejamento e quebrar a equidade entre os usuários. Mas não podemos esquecer que algumas políticas públicas importantes na área da saúde tiveram origem justamente na atuação firme da Advocacia e dos Tribunais, a exemplo do tratamento aos portadores da AIDS nos anos 1990.

Por sua vez, no âmbito da Previdência Social muitos benefícios previstos hoje em Lei tiveram origem nos Tribunais. É o caso, por exemplo, do salário-maternidade à mãe adotiva, ao pai adotivo e ao pai viúvo. Outros benefícios não se tornaram objeto de legislação, mas geralmente encontram o respaldo da jurisprudência, como é o caso do auxílio-doença parental, da pensão a companheiros (as) homoafetivos (as), da aposentadoria por invalidez com flexibilidade na análise médica, do pagamento do adicional de 25% de assistência permanente para qualquer aposentadoria, da revisão do cálculo de aposentadoria de professores etc.

O cuidado do Poder Judiciário com as questões envolvendo a Assistência Social não é diferente. Com efeito, são frequentes as decisões que flexibilizam os critérios da LOAS para a concessão do benefício assistencial a pessoas idosas ou com deficiência. Muitos de seus beneficiários, manifestamente pobres, só não estão desamparados pelo Estado porque tanto a Advocacia quanto o Judiciário procuram dar uma aplicação justa para a lei.

Uma das primeiras lições ensinadas nas ciências jurídicas é a máxima segundo a qual o Direito não se esgota na Lei. Como diz o velho brocardo latino, "summum jus summa injuria". A vida forense permite uma rica avaliação do Direito como um todo. A sensibilidade do julgador é geralmente mais apurada do que a daqueles que participaram da elaboração da lei. É ele que experimenta a lei no seu dia a dia, identificando seus defeitos e virtudes, seus excessos e suas carências. Por isso, a atuação dos Tribunais por intermédio da Advocacia é essencial para o aperfeiçoamento do Direito.

Deste modo, o objetivo de limitar a atuação do Poder Judiciário sob o argumento fiscal não se sustenta. A história da jurisprudência no âmbito da Seguridade Social tem muito mais valor do que questões de restrição orçamentária. Ademais, não é o excesso de judicialização o culpado por todos os males do Sistema de Seguridade Social. Portanto, além de estar prestes a violar uma cláusula pétrea, a PEC 6/2019 parece negar a evolução natural do Direito pelo seu caminho mais corriqueiro: a jurisprudência. A aplicação "cega" da lei é capaz de promover injustiça, desigualdade e exclusão social. São esses os valores que nós queremos?

*Advogado com especialização em Direito Previdenciário, Direito e Processo do Trabalho e Mestrado em Direito. Professor do Curso de Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie-Campinas.