Fingindo-se de idiota - para sobreviver
O nível do governo e da política no Brasil deixa a desejar, como diria um inglês das antigas, que por aqui aportasse. A observação, discreta, comedida, seria bem-vinda. Em tempos de overstatement, temos que recuperar a arte do understatement, não é mesmo? O inglês teria de reconhecer, diga-se de passagem, que a sua observação se aplica também ao Reino Unido, onde um Boris Johnson agora é primeiro-ministro.
Mas não adianta. A arte do understatement dificilmente será restaurada. O rebaixamento dos padrões intelectuais, éticos e estéticos é fenômeno profundo e antigo, que transcende o campo da política. Estamos indo de mal a pior. Antigamente, reclamava-se do baixo nível da televisão brasileira, por exemplo. Pois bem, considerando o que se vê por aí hoje em dia, especialmente em Brasília, “A Praça é Nossa” ou “Domingo Legal” são de uma sofisticação só comparável à das obras completas de Shakespeare.
O rebaixamento foi longamente gestado, com contribuições domésticas e estrangeiras. Salta aos olhos o peso do componente importado. Sem a contribuição estrangeira, dificilmente teríamos chegado tão longe. A nossa antiga tendência a mimetizar americanos e europeus está se fazendo sentir outra vez, agora com consequências deploráveis e verdadeiramente dramáticas.
Tudo isso foi diagnosticado por grandes brasileiros, e entre eles destaco, mais uma vez, um dos meus gurus – Nelson Rodrigues, que se referia ao “triunfo do idiota”. Esse triunfo era tal, já nos anos 60 e 70 do século passado, que o grande cronista advertia para o surgimento irrefreável dos “falsos idiotas” – de homens e mulheres que, em todas as áreas, simulavam a cretinice com esmero e perfeição. Chegavam a babar na gravata, sempre que necessário, sem qualquer inibição ou constrangimento. Isso por uma razão simples e cristalina: para se proteger. É que os idiotas, reunidos em sólida e massacrante maioria, não toleravam qualquer esgar de inteligência, cultura ou sensibilidade. Quem insistia em resistir ao idiota triunfante, acabava massacrado. O simples instinto de sobrevivência levava, portanto, a que o número de idiotas parecesse muito maior do que realmente era.
O quadro se reproduz agora com tintas mais fortes e de forma ainda mais generalizada e agressiva. O número de idiotas aumentou, e as suas oportunidades de se fazer ouvir aumentaram exponencialmente com as redes sociais. A sua virulência é maior. E ocuparam todos os espaços. Na política, na mídia, nos mercados, nas famílias. Estreitou-se dramaticamente o espaço da sensibilidade e da inteligência. Os falsos idiotas não podem se descuidar e têm que caprichar nos disfarces e na habilidade. Qualquer distração pode ser fatal. Para respirar e trocar ideias, sem máscaras, só em sigilo, na calada da noite, à luz de archotes.
O leitor dirá que são falsas novidades, que a referida simulação sempre existiu, que habilidade sempre foi um requisito do sucesso social. Sem dúvida, mas não vamos perder de vista que habilidade é uma virtude de quinta categoria. Os especialmente inteligentes, os mais imaginativos e sensíveis, tendem naturalmente à inabilidade. Se a habilidade é agora indispensável à sobrevivência, condição para não ser exterminado, tudo fica muito difícil para eles. É preciso imaginar o esforço que têm de fazer os melhores para exercer essa habilidade que não lhes vem naturalmente, a energia que se dispende em simular uma cretinice que não se tem.
O preço do disfarce é alto. Como dizia Fernando Pessoa, a máscara acaba se apegando ao rosto. “Quando quis tirar a máscara”, diz o verso do heterônimo Álvaro de Campos, “estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido”.
O falso idiota corre o risco real de acordar, um dia, e perceber que a sua idiotice já não é mais tão fabricada, já não precisa ser totalmente inventada. Os verdadeiros idiotas, os originais, não adulterados, não passam, desnecessário frisar, por esse processo doloroso, pois já nascem autentica e triunfantemente cretinos.
Para não definhar, a inteligência e a sensibilidade precisam, como tudo, ser praticadas ao ar livre, à luz do sol. Precisam da troca, da interação, precisam perceber que não estão sós no mundo. Por isso, faço aqui, leitor/leitora, o meu apelo, solene e enfático: não se entregue por completo à prática da habilidade e da simulação. E continue dando sinais de vida, sempre que possível.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países.
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