Quantos tomarão a vacina?
Sinal de alerta: pesquisa realizada nos Estados Unidos, o país mais atingido pela pandemia com cerca de 270 mil mortes, revela que mais de 50% dos entrevistados se recusaria a tomar uma vacina contra a covid-19. A enquete foi realizada em meados de maio e citada no artigo “As raízes do ceticismo em relação às vacinas”, das pesquisadoras Zakiya Whatley e Titilayo Shodiya, publicado na edição de dezembro de 2020 na revista ‘Scientific American Brasil”.
Uma das razões para a rejeição da vacina é o sistemático programa de desinformação promovido pelas autoridades daquele país. Assim como no Brasil, o governo federal envia mensagens contraditórias à população, cujo único objetivo é causar desordem com fins eleitoreiros. Nos planos individual e coletivo, há uma relutância quanto à forma mais eficaz de se enfrentar a doença. Máscara? Ficar em casa? Enfrentar as ruas de peito aberto, heroicamente? Enquanto escrevo este artigo, confesso que, ao contrário de super-heróis, não me recordo de um herói vivo. Talvez em Krypton, não na Terra.
Mas há outros fatores para a recusa à imunização. Um deles, segundo o artigo, é o distanciamento entre a comunidade científica e a sociedade. Contribuiu para esse distanciamento o uso discriminatório da ciência por parte dos agentes médicos. Vide, no país ao norte, a era da esterilização involuntária de pessoas consideradas incapazes, o tratamento de homens sifilíticos com placebo mesmo após a descoberta de antibióticos e por aí vai. No Brasil, embora eu desconheça relatos de tal ordem segregacionista, existe um abismo entre o que é produzido pela comunidade científica e o que, de fato, é conhecido pela população.
Tome o caso das universidades públicas brasileiras, por exemplo. Posso entender a falta de habilidade de alguns cientistas para comunicar seu trabalho a não pesquisadores. Mas a ausência de um sistema estruturado de divulgação científica é inadmissível. E esse sistema deve considerar uma linguagem adequada ao interlocutor, os meios e veículos de sua preferência, o tempo que as pessoas dispõe para se informar e a proximidade dos divulgadores de ciência do público maior.
Quando o assunto é a covid-19, será que a maioria da população brasileira está bem informada se, por exemplo, as pessoas já contaminadas e que produziram anticorpos deverão tomar a vacina? Qual a importância da imunização de cidadãos fora do grupo de risco? Qual o estágio de desenvolvimento de cada uma das vacinas em vias de produção por laboratórios? Onde são feitos os testes destas vacinas, o número de pessoas testadas? Parte das informações é transmitida pelos veículos de comunicação tradicionais, mas é pouco.
Um estudo de 2020 da “Reuters Institute for the Study of Journalism” revela que o mundo online, incluindo aí as mídias sociais, é a fonte de informação mais utilizada pelos brasileiros. De 100 pessoas, 87 buscam notícias no universo virtual. A enquete mostra também que 76% das pessoas usam os celulares para se informar. Nesse sentido, uma estratégia eficaz de esclarecimento sobre a covid-19 e a vacina pode incluir, por exemplo, vídeos curtos e podcasts em parceria com influenciadores digitais e agentes de saúde pública. O artigo citado acima mostra o exemplo de um “podcast” intitulado “Dope Labs”. Criado em 2019 nos Estados Unidos para discutir as noções de comunicação e inclusão das populações excluídas da narrativa científica, os temas do universo acadêmico são tratados numa linguagem acessível.
Agentes de saúde têm experiência em levar o tratamento à população. Vide exemplos de campanhas de vacinação contra a gripe, sarampo, etc. O bom senso diz que, tão logo a vacina contra o covid-19 esteja disponível a população correrá aos postos de saúde. Mas, num ano atípico como este 2020 e a ação disfuncional de parte do executivo nacional, convém não confiar apenas no bom senso da população e experiência dos agentes. É necessário e urgente um plano de comunicação desenvolvido pelos governos estaduais e municipais em parceria com agentes de saúde e universidades. Sob o risco de, quando a vacina chegar, haver mais doses do que pacientes interessados na cura.
Ricardo A. Fernandes é publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.