O inferno, o Brasil e o 'impeachment'
O Brasil começa 2021 no inferno, talvez na pior crise de sua história como país. Com uma brutal crise econômica, a intensificação da crise sanitária, a falta imediata de vacinas e de oxigênio, sem política do governo federal que não seja apostar na morte (aí sim, temos uma necropolítica que nem o fascismo clássico abraçou). Junto que elas, agrava-se a crise política e o impeachment volta à pauta. Desta vez para ficar.
Se a crise econômica não é nova e a saída da Ford é apenas a ponta do iceberg da degradação econômica do país, a tentativa de fechar agências do Banco do Brasil, com a demissão de 5.000 trabalhadores, que nem Bolsonaro, ainda que por cálculo político, não pode suportar, mostra em que se transformou a visão dos círculos financeiros e empresariais brasileiros. O teto de gastos segue como sagrado, ainda que as “reformas” de Guedes tenham sido definitivamente enterradas. Mesmo sem elas, o Brasil segue na contramão do mundo e aposta no aprofundamento do neoliberalismo radical, que vai saindo rapidamente de cena em todos os continentes. Sem auxílio emergencial e sem renda mínima cidadã frente a uma brutal recessão, o Brasil viverá uma crise social sem precedentes.
O negacionismo de Bolsonaro, seu darwinismo e mentalidade militar atrasada (morre quem tem de morrer nas guerras e sobrevivem os fortes), junto a uma ridícula incompetência de seu “ministro da Saúde”, o suposto especialista em logística e abastecimento general Pazuello, está levando o país ao desespero. Verdadeiros crimes contra a população brasileira veem sendo cometidos. Se a Fiocruz e o governo de São Paulo, com o instituto Butantan, não tivessem avançado na compra e produção de vacinas, nada teríamos, só a perspectiva infinita da morte. A cloroquina e vermífugos continuam a ser recomendados, criminosamente, pelo Ministério da Saúde, com o silêncio dos conselhos de medicina, embora a maioria dos médicos os repudiem e uma maioria mostre seu compromisso com a vida, sem esmorecer nas emergências hospitalares Brasil afora. Bolsonaro e Pazuello têm que ser responsabilizados política e criminalmente por esse descalabro e essas mortes. O Brasil precisa de nada menos do que isso.
O governo Bolsonaro tem que cair. O presidente tem que ser impichado, não podemos ter mais nem dois anos, muito menos seis, com Bolsonaro no poder. É verdade que sem massas nas ruas, o “impeachment” não anda. Para isso é preciso, paradoxalmente, de um controle básico da pandemia, pois seria irresponsável lançar-nos às manifestações de rua a esta altura. Mas temos que acumular forças até o fim ao menos do primeiro semestre para poder deslanchar um processo de massa. CPIs, pedidos de “impeachment”, panelaços, todo o repertório a nosso alcance deve ser mobilizado, fazendo subir a pressão. Buscar a grande mídia e ganhar nela visibilidade. A derrota de Lira, candidato de Bolsonaro, e a vitória de Rossi, que junta as forças independentes na Câmara dos Deputados, é decisiva nesse sentido – bizarra a posição da maioria do PSOL e da própria Luiza Erundina, que já soube fazer alianças. Corretos estão PT, PSB, PDT, Rede, Freixo e o MES. Uma esquerda que se reconhece como tal e tem programa não precisa de marcações de posição fora de hora.
Muito chocante também é a desmoralização das forças armadas. Com um general incompetente e descomprometido com a vida à frente da saúde do país e inúmeros cargos no governo, as forças armadas vão se mostrando suas debilidades. Sua suposta competência técnica vai se mostrando falaz, seu compromisso com a democracia duvidoso, embora se diga que o alto comando não apoiaria Bolsonaro em suas tentativas de golpe seguidamente anunciadas. Esperemos que isso seja verdade e que elas não se afundem em uma associação criminosa com o fascismo. O treinamento dos militares, quando retomarmos a democracia plena e pudermos aprofundá-la, terá de ser revisto, fazendo-o democrático, melhor tecnicamente e desbolsonarizado, contra a enorme influência que extrema-direita acabou ganhando em particular entre a média oficialidade e seu insulamento em relação ao mundo civil. O mesmo é verdade em relação as PMs e bombeiros, que Bolsonaro, com apoios internos extremamente perigosos, quer transformar em suas milícias. Isso tem que ser prioridade para as forças democráticas. Os avanços parciais na subordinação das forças militares ao poder civil têm que ser renovados e aprofundados pelos governos que sucedam ao de Bolsonaro, quaisquer que sejam suas cores e ideologias.
Construir e fortalecer a frente ampla democrática, acumular forças para o "impeachment", salvar a população brasileira: essas são as tarefas que se põem para forças políticas democráticas. É preciso que isso seja urgentemente entendido.
*Professor, pesquisador do IESP-UERJ