ARTIGOS
Por que ler Lélia Gonzalez
Por LÍDICE LEÃO, [email protected]
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Publicado em 25/03/2021 às 16:07
Alterado em 26/03/2021 às 18:51
Não, eu nunca tinha lido Lélia Gonzalez. Estrou atrasada. A dica veio de um professor que participou da minha banca de qualificação de mestrado. Eu citava a maravilhosa Angela Davis para pontuar o feminismo negro, mas ele achou pouco. E perguntou: onde está a nossa Lélia Gonzales no seu trabalho? Não estava. Então ele me indicou alguns textos dela e sugeriu que eu acrescentasse. Agora estou nesse processo: fazer as alterações indicadas pelos integrantes da banca. E ler Lélia Gonzalez faz parte dessa etapa. Ainda bem.
E por que ler Lélia Gonzalez? Para entender por que chegamos até aqui. Por que a mulher negra é a base da pirâmide social. E por que nós, mulheres brancas, que também somos discriminadas – por sermos mulheres – internalizamos representações sociais manipuladas pelo racismo cultural ou pelo mito da tal “democracia racial” tão comemorada pelos setores conservadores e reacionários.
Lélia Gonzalez escreveu que “o que se opera no Brasil não é apenas uma discriminação efetiva; em termos de representações sociais mentais que se reforçam e se reproduzem de diferentes maneiras, o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes quanto vítimas, a considerarem natural o fato de a mulher em geral e a negra em particular desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa”. Nós, mulheres brancas, também somos vítimas do que ela chama de racismo cultural, que é par do machismo cultural. É esse cenário, internalizado por todas as mulheres, que nos permite achar “normal” ganharmos menos do que o homem no mercado de trabalho para cargos iguais. E é esse mesmo cenário que não permite que as mulheres brancas, de classe média ou alta, enxerguem a posição de “inferioridade” ou subordinação que colocam as “suas irmãs negras” (para usar as lindas palavras de Angela Davis) que contratam como empregadas domésticas.
É preciso reforçar, ainda, que todo esse quadro é fruto de uma estrutura social desigual e injusta, realçada por um sistema neoliberal que sufoca o trabalhador e a trabalhadora, em detrimento do enriquecimento das classes mais abastadas. No entanto, se nós, mulheres brancas, não fecharmos os olhos e não colaborarmos com a normalização da discriminação e da precarização das mulheres negras, já começaremos a fazer a nossa parte. Uma pequena parte, é verdade, diante do todo que ainda precisamos mudar. Mas não negar o preconceito é sim um avanço.
Lélia Gonzalez destaca que “é interessante observar, nos textos feministas que tratam da questão das relações de dominação homem/mulher, da subordinação feminina, de suas tentativas de conscientização etc., como existe uma espécie de discurso comum com relação às mulheres das camadas pobres, do subproletariado, dos grupos oprimidos. (...) Percebe-se que a mulher negra, as famílias negras – que constituem a grande maioria dessas camadas – não são classificadas como tais. As categorias utilizadas são aquelas que neutralizam a questão de discriminação racial, do confinamento a que a comunidade negra está reduzida”. De uns anos para cá, após as ações afirmativas iniciadas durante a era Lula, a questão do racismo e das condições precárias da maioria da população negra ganhou visibilidade e as mulheres negras conquistaram voz e espaço.
Voz e espaço que não podem ser reduzidos neste momento de recrudescimento do preconceito, da censura e do obscurantismo. Neste momento em que a pandemia aumenta o abismo social entre as mulheres que podem e as que não podem fazer o isolamento social. Vamos ler Lélia Gonzalez. Vamos entender o país em que vivemos. De onde vem o racismo, o preconceito e a “internalização” de tudo isso. Entender como tudo começou é a melhor forma – senão a única – de combater e acabar com a discriminação atroz que mata no Brasil.
Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestranda em Psicologia Social pela USP