Há 30 anos, 'JB' revelou escândalo do Proconsult e derrubou fraude na eleição
No retorno às eleições para governador, tentaram roubar os votos de Leonel Brizola
Há 30 anos, uma tentativa de fraude na eleição para governador do Rio de Janeiro foi desbaratada graças ao trabalho das equipes do Jornal do Brasil e da Rádio JB. Com a ajuda de militares ligados aos órgãos de informação, tentou se evitar a vitória do esquerdita Leonel de Moura Brizola, favorecendo-se o candidato apoiado pelos militares, Wellington Moreira Franco. O esquema que ficou conhecido como "Proconsult" entrou na história como a primeira grande tentativa de fraude eleitoral através dos computadores.
O ano era 1982 e o país, debaixo do regime militar já há 18 anos, vivenciava a volta da eleição direta para a escolha dos governadores dos estados. No mesmo pleito, também foram escolhidos os deputados estaduais, deputados federais e um senador em cada unidade da Federação.
No Rio de Janeiro disputavam a cadeira de governador o candidato oficial do governo militar, Moreira Franco, representante do PDS (ex-Arena), partido de sustentação da ditadura militar que, à época, tinha na presidência da República o general João Figueiredo; o deputado federal Miro Teixeira (PMDB), herdeiro direto do então governador Chagas Freitas, mas que tentava passar a imagem de independente; o recém chegado do exílio (1979), ex-governador gaúcho, Leonel de Moura Brizola (PDT); a deputada federal, Sandra Cavalcanti (PTB), que iniciou sua vida política na UDN e no Lacerdismo; além do deputado federal cassado em 1976, Lysâneas Maciel, candidato pelo novato Partido dos Trabalhadores.
Vivia-se a derrocada da ditadura, embora ela ainda fosse perdurar por mais alguns anos. Para evitar novos sustos nas urnas e tentar manter a maioria no Congresso, o governo militar criou o chamado voto vinculado. O eleitor era obrigado a escolher apenas candidatos de um mesmo partido. De deputado estadual a governador deveriam ser escolhidos políticos de uma mesma sigla, sob pena do voto ser anulado.
Inicio da informatização
A principal novidade daquele ano foi a informatização do somatório dos mapas produzidos manualmente pelas juntas de apuração em cada zona eleitoral. Na maioria dos estados brasileiros, a empresa estatal Serpro foi contratada para computar os votos. No Rio de Janeiro, no entanto, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) recorreu à Racimec, empresa dirigida por militares que criaram a Proconsult para atender ao tribunal. Seu responsável técnico era um tenente-coronel do Exército, Haroldo Lobão, ex-chefe do Centro de Processamento de Dados (CPD) do Exército.
As eleições estavam marcadas para 15 de novembro. Menos de um mês antes, na sexta-feira 21 de outubro, na coluna "Coisas da política", editada no Jornal do Brasil, o então diretor-adjunto da revista Veja e colunista do JB, Élio Gaspari, em um artigo intitulado "Uma nova sigla eleitoral no Rio de Janeiro", alertou para a “atividade de pessoas ligadas ao Serviço Nacional de Informações (SNI), em favor do PDS e de seu candidato, Wellington Moreira Franco". O artigo prosseguia:
"De todas as siglas de três letras em ação no Rio, o SNI é a mais discreta, pela própria natureza de suas operações. Até agora, pode-se estimar que esse pelotão agiu em duas direções: numa, contribuiu para orientar as forças uma concepção estratégica tanto na manobra de seccionamento do governador Chagas Freitas, hoje separado do PMDB, quanto na exibição das armas disponíveis para atacar a maré brizolista", diz trecho do artigo(Leia aqui).
Digitação paralela
Apesar da suspeição levantada por Gaspari, o então recém-criado Partido Democrático Trabalhista (PDT) – no qual Brizola juntou o grupo do extinto PTB que não se junto à Ivete Vargas quando ela se apoderou da velha sigla PTB - quase recuou da proposta de montar um sistema de apuração sofisticado, desenvolvido pelo economista César Maia, ainda uma pessoa desconhecida no meio político. O custo do sistema que ele propunha assustou os caciques pedetistas, notadamente Cibilis Vianna.
Porém, o medo da fraude falou mais alto e, na sexta feira, 12 de novembro, três dias antes da eleição que ocorreria na segunda-feira, optaram pelo esquema mais sofisticado. Por ele, fiscais do partido levariam ao escritório do advogado Rafael Peres Borges, no Centro do Rio, as cópias dos mapas de todas as urnas que depois seriam transferidas, por um motoqueiro, para um endereço secreto onde os dados destes mapas seriam digitados.
"Numa sexta feira, dia 12 (a eleição estava marcada para a segunda-feira, 15, feriado da Proclamação da República), o Cibilis Viana (então secretário-geral do PDT) me telefonou, de madrugada, e disse: 'Cesar, eu estou mandando uma pessoa te entregar agora um envelope com 5 mil cruzeiros. Monte o seu esquema'. Eu respondi, 'Cibilis, mas já é sexta-feira'. Enfim, telefonei para o programador, que estava em Petrópolis. Pedi que ele descesse para a gente fazer isso", contou o ex-prefeito do Rio de Janeiro ao Jornal do Brasil, lembrando-se do corre-corre provocado nas semanas seguintes ao artigo de Gaspari.
"Tínhamos um problema básico, porque a legislação eleitoral brasileira dizia que só era possível reclamar contra a apuração com documentos oficiais. Cada partido recebia cópia em carbono com o resultado", disse. "Foi exatamente isso que tivemos que fazer. Juntar boletim por boletim".
Disputa acirrada
Naquela eleição, o Jornal do Brasil e a Rádio JB montaram um sistema de apuração paralela da contagem de votos. Trabalhavam com equipes distribuídas pelos centros de apuração das principais zonas eleitorais, das quais os resultados de cada urna eram repassados por telefone para a redação, onde se fazia a totalização dos votos. O jornal O Globo e, principalmente, a TV Globo, fiaram-se nos números do Proconsult, o que acabou provocando a forte suspeita do envolvimento das Organizações Globo com a fraude que se descobriria depois.
A disputa eleitoral no Rio naquele ano teve momentos distintos. Inicialmente saíram à frente da preferência popular a candidata Sandra Cavalcanti e o peemedebista Miro Teixeira, beneficiando-se da máquina governamental comandada por Chagas Freitas. No desenrolar da campanha, Sandra perdeu espaço para o candidato apoiado pelos militares, Moreira Franco, que passou a rivalizar com Miro. No entanto poucos perceberam que o candidato pedetista, como se definiu na época, correndo por fora, foi conquistando a confiança dos eleitores. Àquela altura, se os militares já tentavam derrubar Miro para garantir a vitória de Moreira Franco, mais ainda faria contra Brizola, considerado por muitos deles como um incendiário.
A partir da eleição do dia 15 de novembro, o PDT passou, então, a recolher os boletins de apuração e a enviá-los para pontos de digitação secretos, conhecidos apenas por Maia: em uma sala em Botafogo digitava-se os resultados dos mapas de apuração de cada urna. Os discos eram processados no Centro de Processamento de Dados da construtora Sérgio Dourado, na Rua Prudente de Morais, em Ipanema. Tudo acompanhado de perto por Maia que, a partir deste episódio, ganhou destaque dentro do partido e mais tarde se transformou no secretário de Fazenda do governo Brizola, que lhe deu projeção nacional.
A Rádio Jornal do Brasil, logo após os primeiros dias de apuração, verificou que Brizola liderava na capital, onde estavam 70% dos votos, e decidiu se concentrar na apuração dos votos de Brizola e Moreira Franco. Graças a isto, a rádio e o jornal puderam perceber antes dos resultados finais as distorções que ocorriam nos números oficiais do TRE, repassados pelo Proconsult. O esquema da apuração do PDT também detectou as falhas que ainda não eram vistas como fraudes.
Diferencial Delta
Paralelamente, porém, a TV Globo, assim como o jornal O Globo, por ingenuidade ou, como desconfiaram os pedetistas, por participarem do esquema, fiaram-se nos números do Proconsult que sempre apresentavam Moreira Franco à frente.
Para tentar manter o candidato dos militares em primeiro lugar, o Proconsult apegou-se a duas estratégias diferentes. Primeiro deu preferência às urnas do interior do estado onde, teoricamente, o candidato oficial estaria ganhando.
Paralelamente, surgiu o chamado “Diferencial Delta”, como alegariam na época os diretores do Proconsult, justificando o grande número de votos brizolistas anulados por conta da obrigatoriedade da vinculação dos votos. A questão é que nos mapas divulgados pela Proconsult a quantidade de votos anulados e em branco em determinado momento diminuíram à medida em que eles eram, fraudulentamente, contabilizados pró Moreira Franco, na tentativa de modificar o resultado das urnas.
De qualquer forma, dando preferência aos números apresentados pela Proconsult e desconhecendo apurações paralelas como a do PDT e da Rádio JB, as organizações Globo - em especial a TV Globo – alimentavam a esperança de o golpe ser assimilado. Na medida em que difundiam a ideia da vitória do candidato dos militares, permitiriam aos técnicos da Proconsult inverterem os votos nulos e brancos, contabilizados para o candidato dos militares.
Miro reconheceu vitória
Então editores do jornalismo da Rádio JB, Pery Cotta e Procópio Mineiro noticiavam a apuração 24 horas por dia. A constatação, dia a dia, diante da contagem própria de votos, era a mesma do PDT: Leonel Brizola vencia Moreira Franco na primeira eleição direta para governador após 18 anos de ditadura militar no Brasil.
Respaldado na apuração paralela da Rádio JB e também na experiência eleitoral que já acumulava, Miro Teixeira, no dia 18 de novembro, deu entrevista reconhecendo a vitória de Brizola. Em seguida, procurado pelo advogado do PDT, Wilson Mirza, concordou em enviar um telegrama a Brizola cumprimentando-o pela vitória.
De posse do telegrama, no dia 19, Brizola concedeu uma entrevista voltada principalmente para jornalistas estrangeiros, na qual se proclamou o vitorioso da eleição, independentemente de os resultados divulgados pelo TRE/Proconsult não demonstrarem isto. "Só a fraude nos tira a vitória", alertou, jogando a primeira pá de cal no esquema da fraude.
Com isto, seu alerta repercutiu mundialmente e logo recebeu saudações de personalidades internacionais, como o chanceler socialista da Alemanha, Helmut Schmidt. Assim começou a ruir o esquema da fraude, inclusive com a Rede Globo acenando uma bandeira branca ao abrir espaço para uma entrevista do candidato pedetista. Brizola, porém, impôs condições: falaria ao vivo, sem direito a cortes ou edições. O que de fato aconteceu.
Apesar de tudo, continuava a disparidade dos números. Em 22 de novembro, o Jornal do Brasil divulgava que Brizola alcançara 33,3% dos votos, enquanto Moreira Franco tinha 30,8%, em um total de 14.791 urnas apuradas. Já o TRE, respaldado no Proconsult, dava o resultado de apenas 804 urnas, nas quais Moreira Franco tinha 72.163 votos, Miro Teixeira totalizava 64.270 e Brizola atingia apenas 36.349 votos.
Proconsult pressiona ‘JB’
Apesar de todos os indícios claros da vitória de Brizola e, mesmo depois do reconhecimento por Miro, somente no dia 24 de novembro Moreira Franco resolveu reconhecer sua derrota no pleito. O Proconsult, por sua vez, ainda demorou mais três dias insistindo no erro.
Para este reconhecimento, foi preciso que o Jornal do Brasil apontasse que estavam ocorrendo diferenças na contabilidade dos votos nulos e branco. Depois de mostrar que o numero de votos nulos e brancos reduzia quanto mais urnas eram apuradas, foi que o TRE se convenceu. No dia 26, o JB noticiou que o tribunal admitia estarem errados os boletins de apuração.
Nesta edição, o JB anunciava na primeira página: “O responsável técnico pelo Proconsult, Haroldo Lobão, assumiu a responsabilidade pelo erro, ao admitir que o programa que fez está misturando votos brancos e nulos nos diversos cargos”
Pela apuração paralela do JB verificava-se que o número de urnas apuradas crescia, mas havia uma redução nos em branco e nulos. Era o "Diferencial Delta" atuando a favor de Moreira Franco. A divulgação dos resultados diferentes dos da Proconsult levaram o presidente do TRE, desembargador Marcelo Santiago, a prometer uma recontagem dos votos.
>> TRE admite que errou boletins e vai reprogramar computador (26 de nov)
Paralelamente, porém, o dono da empresa de processamento de dados, Arcádio Vieira, procurou e ameaçou os editores da Rádio JB. Dias depois, o mesmo foi feito com Cesar Maia, que comandava a apuração do PDT.
A tentativa de cercear a apuração paralela foi denunciada na manchete do 'JB' em 27 de novembro de 1982: "Proconsult pressionou a apuração do JB". Era o que faltava para a fraude em si ganhar repercussão internacional.
>> Proconsult pressionou apuração da Rádio JB (27 de nov)
Oito dias depois da eleição, o JB denunciou a tentativa de intimidação da Proconsult. A denúncia, na edição do dia 27, acabou sendo comentada pelo mais influente colunista político do jornalismo brasileiro, Carlos Castello Branco, o Castellinho, na sua coluna do dia 28
>> Em sua coluna, Castellinho fala sobre a fraude. Leia: "Mistificando eleições"
Cesar Maia ainda hoje se recorda da visita do diretor da Proconsult. "O Arcádio me procurou dizendo que não estávamos levando em consideração o "Diferencial Delta", já que o governo federal determinou que a eleição seria vinculada. Essa história do "Diferencial Delta" já havia aparecido numa entrevista à Band, antes mesmo da votação, e o Arcádio disse ainda que a vinculação prejudicaria principalmente o Brizola, que é área popular. Eles cometeram uma falha", lembra-se.
Ao contestar estes argumentos, Maia apegou-se a um fator simplório: "Eu disse a ele que apurar era somente uma conta de somar e que tínhamos cópias de cada boletim", recorda. Ao somar os resultados, o PDT chegava ao seu numero e apontava erros na contagem do Proconsult.
>> PDT não acredita em erro e acha que houve desvio (27 de nov)
Foi exatamente no dia 28 de novembro que o TRE decidiu dar um basta na história e determinou uma auditoria na Proconsult, ao mesmo tempo em que solicitou a investigação do Departamento de Polícia Federal (DPF). Como o país vivia o período da ditadura, esta investigação não teve nenhum resultado concreto.
>> Polícia Federal vai investigar Proconsult por pedido do TRE (28 de nov)
O presidente do TRE então solicitou ajuda ao Serpro para computar as eleições no Rio. Como, a cada dia continuavam sendo detectados novos erros nos boletins oficiais emitidos pelos computadores da Proconsult, no dia 30 de novembro o TRE suspendeu o trabalho da empresa, repassando a apuração para o Serpro.
>> Serpro diz que sistema da Proconsult não é confiável (29 de nov)
>> Serpro deve concluir hoje a auditoria da Proconsult (1° de dez)
Reunião no TRE confirma eleição de Brizola
Diante da grande repercussão das falhas da Proconsult e da pressão que ocorreu a partir do noticiário da Rádio JB e do Jornal do Brasil, o presidente do Tribunal Regional Eleitoral, desembargador Marcelo Santiago, recebeu representantes do PDT e da empresa de processamento de dados para uma conversa a portas fechadas.
No 12° dia após a votação, o partido conseguiu apurar os votos de 17.007 das 17.560 urnas em todo o estado - o equivalente a 95% do total. A apuração só não chegou a 100% porque 553 boletins não puderam ser lidos por estarem em branco, ou por serem ilegíveis. O partido ficava com uma das cinco cópias dos boletins. De acordo com a apuração do PDT, o partido de Brizola tinha 31,3%, seguido de 28% do PDS, 19,5% do PMDB, 9,8% do PTB e 2,9% do PT.
O TRE, então, pediu que Maia enviasse os boletins para a sede do Tribunal, onde tudo passaria por nova contagem. "O presidente do TRE me perguntava o que o PDT queria. Nós exigimos uma recontagem de votos. Eu mandava os boletins para o TRE e depois de umas cinco ou seis horas me ligavam dizendo que o PDT tinha razão", recorda.
"Na análise dos boletins, peguei fraude também para deputado estadual que elegeu uma moça de Nova Iguaçu. Depois da apuração ser toda refeita, ficou comprovado: Brizola ganhou a eleição", orgulha-se o democrata, reconhecendo que o golpe foi derrubado graças ao papel da Rádio JB e do Jornal do Brasil naquela apuração.