ARTIGOS
Náusea e estranhamento
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 25/04/2021 às 08:40
Outro dia, um amigo me revelou ter pelo Brasil de hoje um sentimento de estranhamento. Não é suave este sentimento a ocorrer na vida de todos nós como prenúncio de uma ruptura inferida, antes de percebida. Na paleta de nossas emoções se avizinha e às vezes antecede o suplício da náusea, esta sim com manifestações físicas mais evidentes.
Na tristeza é o primeiro degrau descendente porque nele o objeto do entristecer é quase sempre indefinido, diluído, inefável a contribuir para a angústia crescente do sentimento de perda impalpável, mas permanente.
Com meu amigo, por termos a mesma idade e por nos conhecermos de bancos escolares, o diálogo flui como se conversássemos diante de espelhos, pois conhecemos tanto nossas manhas e artimanhas que elas passam muito rapidamente e mergulhamos no que a amizade tem de melhor, a confiança sem suspeitas e a abertura para a crítica sem ressentimentos. Enfim, uma amizade como só um cotidiano de quase setenta anos permite, pois durante esses anos subimos e descemos a escala cromática de nossos temperamentos e hoje deles sabemos distinguir até o mais leve traço de impertinência.
A expressão "estranhamento“, usada em relação ao Brasil, pareceu-me um sentimento deslocado que só se tem em relação a lugares estranhos, a terras estrangeiras. Um sentimento a nunca abandonar o imigrante por mais integrado esteja na terra de escolha. Onde sempre se é forasteiro. De fora.
Esta constatação nos transpôs para uma outra dimensão do estrangeiro, tal como a percebemos quando lemos na mesma época o livro de Camus, num tempo em que a peste não era mais do que uma metáfora ou uma alegoria e não uma realidade que já nos roubou tantos conhecidos e milhares de compatriotas.
Tanto ele quanto eu nos lembramos textualmente das primeiras frases do “Estrangeiro": “ Mamãe morreu hoje. Ou talvez ontem. O telegrama apenas diz: Sua mãe faleceu. Pêsames”.
Este era o estranhamento de que falávamos. Um estranhamento incompreensível na revelação fria da morte de uma mãe, em que a preocupação se desloca do fato para a hora do fato, emprestando a um sentimento menor um desvio do que deveria ser uma emoção em si plenamente expandida e irreparável. Uma espécie de descarga anômala de uma verdade insuportável. Um estranhamento vital. Um sentimento de imigrante numa terra hostil.
O estranhamento pelo o Brasil é desta natureza. Como se ao invés de estarmos em nossa terra madre, estivéssemos numa terra estrangeira, para a qual migramos sem saber o porquê, sem conhecer a fronteira de saída. E a não reconhecer o Brasil no que nos falam sobre o Brasil em que crescemos. Há um outro vozerio no ar. Uma comunicação estereotipada, distorcida sempre, com acentuada inclinação para um irresistível caos organizado, onde se percebe, com náuseas, o triste barateamento do valor da vida num morticínio de 400 mil brasileiros, absorvido como se fosse um acontecimento corriqueiro. Uma violência que sequer se reconhece. Ou de que se penitencia.
Que ventos plantamos para nos trazer esta tempestade? Que língua devemos aprender para que nossa insatisfação cotidiana chegue aos ouvidos do Leviatã e o faça saber que a cada passo seu se quebram colunas vertebrais de nossa história e de nossa cultura e que o horizonte a se delinear para nós, nossos filhos e netos nunca foi e nunca será por nós consentido. E quando e onde se deu mandato a quem se permite, de espada na cinta, nos tocaiar à luz do dia como se fôssemos nós os culpados desta mortandade geral? E a ousadia de punir nossa crítica e nossa desaprovação, nosso repúdio a uma pulsão de morte a contaminar cada hora de cada dia. Cada dia de todo mês. O que se esperava? A saudação dos condenados à morte por Nero, o insano?
Sim, nós já sabemos de quem é a culpa desta programação macabra. Nada mais imperioso, porém, do que apurar se há aqui intenção malévola ou incompetência. Ambas imperdoáveis porque renitentes, impermeáveis ao simples bom-senso ou até à eloquência dos números. Estaremos nós sitiados por uma legião estrangeira, que nos leva a este estranhamento do andar, como se pisássemos em ovos minados?
Afinal, quem fala a língua deste déspota invasor?
Certo, temos um falante. Fala pelos cotovelos a nos tentar convencer de que no meio desta miséria toda, a porta de escape da servidão é aprofundarmos os erros, persistirmos numa contabilidade asnática já abandonada por quem sabe a importância de conduzir um Estado e não está preocupado em primeiro destruí-lo.
Por que derrubar árvores durante o dia, incendiar florestas durante a noite e tentar engabelar com hipócritas promessas e demandas milionárias se o que se diz ao meio dia se desdiz às 20 horas, em plena televisão?
Será que já não se tornou óbvio que o Brasil hoje é um país estranho, estranhável, estrangeiro a que se fecham aeroportos e portos e que muito em breve se fará em torno de nosso país em todas as cartas de navegação mundo afora um cordão sanitário do Oiapoque ao Chuí? E de nós, talvez, não se comprará sequer um carregamento de soja? A China já aumenta substancialmente suas importações em mercados alternativos, inclusive nos Estados Unidos. (realismo político a ser reaprendido). E se a moda pega? E se a China expandir essa estratégia?
Que mensagem civilizatória se pretende passar quando se propaga que pobre não lê e portanto se deve taxar o livro? Que tipo de cidadão se pretende multiplicar quando se propõe facilitar o porte de até duas armas e até sessenta como posse? O que se espera quando se transforma em plataforma de governo um conceito como o de exclusão de ilicitude em benefício de agentes policiais? Que tipo de segurança se pretende aprofundar em nossas traiçoeiras estradas quando se aumenta o limite máximo de velocidade e se eliminam radares eletrônicos? A quem beneficia defender a barbaridade de que os assentos de segurança para crianças em automóveis devem ser facultativos? Em que país do mundo se ousa propor legislação semelhante?
E por que vender estatais que estão dando lucro? Por que colocar a rede elétrica brasileira em mãos privadas? Para copiar o drama de nossos preços de gasolina e diesel? Finalmente, alguém ouviu falar em programa educacional? Tudo muito estranho.
Será que a Pandemia nos ensinará a importância do investimento público e do papel das Universidades e Centros de Pesquisa na defesa do interesse nacional? Ou será que a vida e a saúde de uma população não são essenciais num país com as riquezas do Brasil?
Nós que seguimos tão fielmente o trumpismo, não poderíamos copiar o exemplo de Biden e taxar os milionários em benefício do país? Ou, como propõe nosso czar, insistiremos em congelar salários da ex-classe média, hoje meramente subclasse medíocre?
Será que reconheceremos que o papel de um servidor público qualificado é indispensável e não facilmente substituível por servidores de outras corporações por melhores que sejam em suas especialidades? Será que a Pandemia não demostrou isso à exaustão?
Positivo que aqui e ali se multipliquem as críticas a essas políticas insanas. A cidadania reage. São inúmeros os depoimentos e as análises de gente corajosa como a professora Deisy Ventura, da USP, e seus estudos sobre o comportamento do governo na Pandemia. Ainda outro dia assisti debate sob o patrocínio do Clube de Engenharia, coordenado por Francis Boghossian, onde Pedro Celestino, presidente do Clube, faz pungente defesa da Petrobras. São seminários e palestras disponíveis na internet.
Só a cidadania bem informada resiste ao aprofundamento do projeto neoliberal neste momento dramático e mitômano que estamos vivendo no Brasil.
O estranhamento se tornou náusea diante de tantas e tamanhas dissonâncias a nos fazer imigrantes em nosso país.
Mas, o estrangeiro não somos nós. E o Brasil não é deles.
Embaixador aposentado