ARTIGOS
O cachorro da Praça Graciliano
Por RICARDO A. FERNANDES, [email protected]
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Publicado em 14/01/2022 às 19:35
Alterado em 14/01/2022 às 19:35
Oitenta anos. Este ano faz oitenta e três, contam os mais antigos, com algum orgulho nostálgico, a respeito do cachorro na Praça Graciliano Ramos. Dizem que ele estava lá muito antes de darem nome ao local. Aliás, antes de sequer existir uma praça.
Das muitas histórias sobre o animal, uma delas afirma que, décadas atrás, tentaram construir um prédio no terreno. Tentaram, pois não houve trator que chegasse perto. Se não pela estreiteza da rua, por medo dos caninos afiados da lenda a quem chamam de Dente. Com rosnado grosso e latido seco de estourar os tímpanos, o cão meteu medo nos operários, polícia e até na carrocinha.
O nome vem de um enorme incisivo que avança boca afora e dá ao animal um aspecto assustador, demoníaco. Chamá-lo de Demônio, Demo ou Capeta seria fácil. Além do mais, atribuir a palavra demônio ao demônio descaracterizaria seu disfarce, principal atributo do belzebu. Dente é único, incontestável. O resto a imaginação dá conta.
Outro dia, caminhando próximo à praça, o vigia de um prédio me alertou para ter cuidado. O Dente estava atacado. Só naquela manhã, já havia colocado dois moleques para correr. Metidos a valentões, os barulhentos adolescentes ameaçavam a criançada nas redondezas. Com instinto apurado, o cão da Praça Graciliano Ramos, que sente na ameaça cheiro de covardia, com seu corpo atarracado, pelagem marrom malhada, cabeça grande e orelhas minúsculas, partiu para cima dos aspirantes a malfeitores e os colocou para correr. Só que a irritação foi tanta que o nervosismo durou algumas horas. Com ele, é assim. Leva tempo para a adrenalina baixar. Melhor evitar a rua.
Esta semana, a chuva que assola o país deu origem a mais um filhote: próximo à árvore onde o soberano da praça se abriga nas tempestades, a água levou terra, asfalto e deixou um buraco do tamanho de um tanque. Dente, contrariado, foi se abrigar entre os matos que crescem desde meados de dezembro. Sabe-se que está lá, pois dá para ouvir seus rosnados. Talvez irritado com a cratera recém-aberta. Ou pode ser que, numa solidariedade canina incompreensível à percepção humana, esteja inconformado com o descaso de governantes e seu pouco apreço às cidades que os elegeram. Só na capital paulista são mais de 2.000 buracos.
A praça fica colada à uma ladeira. À tardezinha, na hora da tempestade, o lugar é ideal para a prática de rafting. A criançada nos prédios se diverte, hipnotizada com a água a descer com força suficiente para arrastar carros estacionados. Por sorte, nenhum acidente foi registrado, ao contrário de regiões brasileiras ignoradas pelo governo federal, cujo mandatário parece mais interessado em fazer turismo do que trabalhar.
Se a questão é lazer, sugiro ao prefeito convidar o presidente para fazer turismo de aventura pelas ruas da cidade. Está aí mais uma fonte de renda para o município. Se pegar um avião em Brasília ao meio-dia, o mandatário provavelmente chegará antes da chuva. Só um aviso: se quiser praticar rafting próximo à Praça Graciliano Ramos, é bom o chefe do Executivo saber que o Dente não respeita autoridades. Morde mesmo, sem dó, o cão que quando late se agiganta, fica do tamanho de uma baleia. Ainda mais quando sente o cheiro de gente pequena, covarde, que só sabe fazer molecagem no país de Gracilianos, Machados e Guimarães.
Publicitário, escritor e vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE-SP). Autor do romance “Através”.