ARTIGOS
Festa na farmácia
Por RICARDO A. FERNANDES, [email protected]
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Publicado em 28/01/2022 às 16:45
Alterado em 28/01/2022 às 16:45
Não era delírio. Tampouco meus óculos precisavam de lentes novas. Mas o que vi, ao passar na farmácia em busca de um comprimido para dor de cabeça, deixaria qualquer infectologista sério descrente na imagem e, talvez, com a maior enxaqueca.
A fila ia do balcão até a entrada do estabelecimento. Estranho para um lugar onde, via de regra, dois balconistas, um farmacêutico e um caixa atendem os clientes com exclusividade. Na fila, eram jovens, na maioria. Bronzeados, falantes e alegres, se amontoavam para fazer o teste de covid.
Como o estacionamento estava cheio, deduzi que voltavam de viagem por causa do feriado prolongado. Ao me aproximar, confirmei a hipótese, sustentada por frases como “Voltei mais tarde para aproveitar o dia”, “Você estava no bar x?”. Tão preocupante quanto a aglomeração eram as não poucas máscaras abaixo da linha do nariz. Fazia calor, afinal. Pensei em reclamar com o farmacêutico a fim de promover um distanciamento maior entre as pessoas, mas logo desisti: o pobre homem era o mais perdido entre todos. Ademais, estragaria a reunião festiva na fila da farmácia.
Antes de me afastar, ouvi dois casais rindo do fato de, provavelmente, terem se contaminado. Ao menos se livrariam da preocupação, argumentavam. Era como se a pandemia estivesse no final. Poderiam dizer, no futuro, que pegaram a doença e sobreviveram.
Infelizmente, nem todos terão a chance de contar histórias. Em duas semanas, o número de mortes quase triplicou. Caso a tendência de alta permaneça, em breve voltaremos a ter mais de mil mortes por dia no Brasil, grandes cidades com fila de espera para UTI e novo caos no sistema de saúde. Ao compararmos a tragédia que nos assolou em 2020 e 2021 com a deste janeiro, há, no entanto, duas diferenças.
Primeira: se antes havia preocupação, agora há um relaxamento natural, como se estivéssemos no fim de uma festa macabra. Não estamos. O medo, a preocupação e os cuidados redobrados cederam espaço à negação e desleixo. Como se o pessoal na fila da farmácia, a maioria ainda estudantes, suponho, preenchesse o gabarito de uma prova e, pouco depois da metade, por preguiça ou distração, interrompesse o preenchimento e não entregasse o papel. Por maior que tenha sido o esforço no início do teste, a nota é zero. O zero, neste caso, pode significar não ter a chance de fazer mais provas.
Outra diferença que merece destaque é a contaminação de crianças. Se anteriormente e ainda agora a preocupação é com os idosos, o alto índice de contágio da população faz dos pequenos brasileiros, na sua maioria ainda não vacinados, um recorte que demanda especial atenção. No dia 8 de abril do ano passado, o país bateu o recorde de mortes num dia: 4.148. Nesse mesmo dia, o país apresentou 39.650 pessoas infectadas. Em 2022, dados de 27 de janeiro mostram quase 230 mil novos casos. Cerca de seis vezes mais do que no dia em que o país apresentou o maior número de óbitos desde o início da pandemia.
Oficialmente, até 23 de janeiro de 2022, o Ministério da Saúde relata, na faixa entre 5 e 11 anos, 324 crianças mortas por causa da covid. Já entre o público de 0 e 4 anos, mais vulnerável e ainda fora do programa nacional de imunização, são 1.220 óbitos. Isso sem considerar a subnotificação, estimada em 2.537 casos pela Vital Strategies, organização global formada por especialistas que atuam junto aos governos.
Milhares de crianças mortas. E muitos dos nossos pequenos ainda correm risco. Não há motivo para festa.
Publicitário, escritor e vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE-SP). Autor do romance “Através”.