ARTIGOS
Um ano como nenhum outro
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 30/01/2022 às 08:40
Alterado em 30/01/2022 às 08:40
Nem mesmo secara a tinta de minha última coluna quando me telefonou o Pedrinho Bom-Senso.
“Precisamos conversar, disse ele”.
Somos amigos de infância. De infância, mesmo. Fomos para o primário juntos, dali para o ginásio e terminamos o científico em fins dos anos 50. Dito desta forma, parece normal. Mas, não. Nada mais gostosamente anormal do que uma amizade a se transformar em elos de famílias. Pedrinho se casou com minha prima. Sou padrinho dos filhos deles. Estivemos juntos no pior e no melhor de nossas vidas. Choramos ambos as mortes de nossas mães. Nos amparamos mutuamente nas ante-salas das maternidades em que nasceram nossos filhos.
Quando fomos para universidades diferentes, ele cursando medicina e eu leis e teorias do Estado, nos víamos todas as semanas. Mais tarde, casados, nossas mulheres se tornaram grandes amigas. Viajamos. E sempre, sempre, discutimos muito. Talvez, nossa amizade se sustente por tanto tempo muito mais por nossas divergências do que por nossas convicções.
Nossas discussões são multi-temáticas e se espraiam desde a origem das espécies até a finitude da vida. Nossa educação religiosa durante todos os anos de colégio nos transformou em agnósticos, o que não significa que não tenhamos um grande respeito pelo sobrenatural e pelo mistério. Não somos pessoas fáceis e mais de uma vez nos lançamos impropérios diversos que hoje são considerados ridículos por nossos filhos que não cansam de nos chamar de dois velhos caducos.
Temos praticamente a mesma idade. Sou mais velho do que ele uns dois meses se tanto. Ele recentemente nos assustou a todos com um câncer na tireóide. Operou-se e hoje, fora uma ligeira rouquidão, continua o mesmo. Discretamente - e escondido de minha prima - fuma charutos. Eu, contribuí para a angústia familiar com um entupimento das coronárias que quase me levou aos 54 anos. Sobrevivi. Também fumo cachimbo. Descaradamente.
Pedrinho adquiriu o apelido de Bom-Senso num assalto que sofremos numa casa de praia em Cabo Frio lá pelos anos 60 e poucos, quando, com alguns amigos, decidimos comemorar minha entrada no Rio-Branco. Uma noite, em que havíamos bebido muito e dormíamos espalhados pelas salas e quartos fomos acordamos com empurrões e xingamentos por dois encapuçados armados de revolver. Os primeiros a serem rendidos fomos os do primeiro andar, eu dentre eles. Para não me alongar muito, esclareço que estávamos sem grana e os caras cada vez ficavam mais nervosos e gritavam pedindo dinheiro, senão…
Foi quando surgiu Pedrinho no alto da escada. Pedrinho tem mais de 1,80m de altura e, naquela época, fazia uma figura assustadora pela massa corpórea acostumada a maratonas e campeonatos de polo aquático. Talvez pelo porre ainda não curado, talvez pela veia dramática que até hoje não o abandonou, Pedrinho, vestido numa minúscula sunga e com um inesperado penico na cabeça desceu a escada falando uma mistura de alemão antropofágico que estudava por simpatia a Goethe, a quem queria ler no original. Sua entrada provocou um pavor paralisante nos dois assaltantes, amadores atrás de um dinheiro para comprar um baseado. Até nós nos assustamos. Maria Angélica, que nos acompanhava e hoje é uma respeitada psicanalista didata, nos confessou ter pensado que Pedrinho havia surtado para valer.
Sempre falando aos berros aquele alemão assustador, Pedrinho chegou a meio-metro de um dos assaltantes e delicadamente enfiou o dedo indicador no cano do revolver. Por sorte, na mesma hora, o som de uma freada de carro insinuou a chegada da polícia, por alguma boa alma chamada. E os encapuçados se escafederam pelas dunas da praia. A história se espalhou e Pedrinho Bom-Senso se tornou uma figura universal e admirada como Nostradamus.
Bem. Pedrinho Bom-Senso queria conversar comigo e propôs um almoço no Barata-Frita, respeitável boteco nos meandros de Botafogo. Marcamos para as 14hs, na terça-feira.
Cheguei mais cedo e pedi uma caipirinha de lima sem açúcar. Estranhamente, Pedrinho se atrasava e quando finalmente chegou me pareceu bem mais acabrunhado que o habitual. Sentou-se, pediu uma caipirinha de abacaxi e, sem me apertar a mão, declarou com aquela voz soturna de quem anuncia uma derrota do Flamengo:
“Que merda a nossa geração fez para acabarmos assim? Que merda de país é este que está cavando mais uma ditadura sem ter sequer saído da última? Você ainda não sacou, né? Somos um país de trouxas e de estúpidos almofadinhas”.
Foi uma tarde memorável no “Barata Frita” e saímos de lá com uma triste convicção. Neste ano de 2022 não podemos comemorar o bicentenário da Independência, porque simplesmente ainda não somos independentes e, pior ainda, nos envolvemos cada vez mais no jogo das mesmas forças que desde 1822 nos lançaram num país dual, num país rachado.
Nossa visão de D. Pedro I a declarar “Independência ou Morte” nos enche de um orgulho talvez desmesurado. Não há historiador sério que não nos chame a atenção para a relutância da nossa “elite colonial” em ver os negros e mulatos, os escravos recém-libertos envolvidos numa luta em favor da Independência.
O povo brasileiro foi excluído de sua própria festa. 200 anos depois continua excluído, pobre e faminto.
Pedrinho Bom-Senso não tem dúvidas de que este ano como nenhum outro nos dará a oportunidade de optarmos entre a dependência consentida e a independência reconstruída. Nunca o Brasil se mostrou tão desnudo diante de seu povo. E nunca um povo terá tido a ventura de conquistar sua Liberdade depois de 200 anos de um teatro de faz de conta.
E sem dar um tiro. Apenas pelo voto. E no primeiro turno.
*Embaixador aposentado