ARTIGOS
Um cartão de vantagens
Por RICARDO A. FERNANDES, [email protected]
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Publicado em 11/02/2022 às 19:34
Alterado em 11/02/2022 às 19:34
Já faz alguns anos que decidi banir os cartões de crédito da carteira. Sob o pretexto de concentrar o pagamento das contas num único dia, acabei, por consumismo, necessidade e falta de planejamento, contribuindo para o enriquecimento das instituições bancárias que gentilmente haviam me oferecido os pequenos e promissores pedaços de plástico.
Após meses ao telefone negociando com implacáveis atendentes, além de moldar o quadril nos assentos de metal dos bancos dos cartórios, finalmente consegui encaminhar a solução das dívidas. Desde então, prometi a mim mesmo e a uma dúzia de santinhos – que carrego na carteira até hoje – nunca mais entrar no cadafalso econômico que me tirou noites de sono e deixou meu couro cabeludo parcelado. Pagamento, só à vista.
Consegui me virar razoavelmente bem sem as ofertas de crédito. A falta de limite eliminou algumas regalias, tive de apertar o cinto e cair na real. Troquei a cerveja diária pela água, fiquei mais caseiro, emagreci, ganhei disposição e fui apresentado aos incontáveis benefícios de uma vida sem cartões de crédito.
Mas a vida muda, a internet fica mais inteligente e, com ela, surgem diariamente ofertas de “air fryers” no perfil das redes sociais, parceladas em até 12 vezes no cartão. Uma pechincha, assim como a bicicleta ergométrica e as cápsulas de geleia real que prometem uma vida plena, saudável e feliz.
Comecei a bisbilhotar no aplicativo do banco. De início, tive receio de solicitar o cartão e ter o pedido recusado. O dedo indicador se aproximava da tela e recuava com uma rapidez hesitante. Resolvi, então, ligar para o gerente da minha conta, que estranhamente me atendeu de primeira. Bom sinal. Expliquei que não queria pagar anuidade. Sério, relutei entre meia dúzia de opções até que, finalmente, o bom rapaz do outro lado da linha – seria o mesmo homem de anos atrás, tão intransigente? – disse que o cartão fora aprovado e seria entregue em até 10 dias úteis.
Satisfeito, aliviado e com o peito inflado, passei a procurar ofertas de pílulas de cálcio nos sites das farmácias. Agora com a certeza e reconhecimento de alguém que tem crédito no mercado. “Seu pedido foi recusado” ou “Esta forma de pagamento não está disponível”, nunca mais!
Só que o cálcio milagroso do laboratório passou a dividir a timeline do Facebook com incontáveis vantagens que obteria ao utilizar o cartão. “Cashbacks”, “40% off”, promessas de viagem ao Taiti e até médicos online dão a impressão de ter em mãos o bilhete premiado da loteria. Tudo muito fácil e rápido, basta gastar e aguardar a chegada da prosperidade. E aceitar a oferta dos bancos, especialistas quando o assunto é lucro.
Em 2021, por exemplo, o Bradesco registrou lucro recorde desde a sua fundação: 26,2 bilhões de reais. Se adicionarmos à caixa de pandora financeira o Itaú Unibanco e Santander, dá um total de R$ 69,4 bilhões. Isso mesmo. Bilhões. Quase 35% a mais do que em 2020.
Fazendo a conta: R$ 69,40, setenta reais, para arredondar, não pagam duas semanas de condução diária, ida e volta, nas grandes cidades brasileiras. Acrescente nove zeros à direita e tem-se a soma do lucro dos três maiores bancos privados brasileiros no ano passado. Ano em que o endividamento das famílias bateu recorde, segundo pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Comércio.
A conta fecha? Da próxima vez que estiver no ônibus, pretendo me certificar de que há moedas suficientes no bolso para não passar vergonha diante do cobrador. Mas se acaso faltar grana, é só ligar para o gerente, pedir para aumentar o limite de crédito e perguntar ao cobrador se aceita cartão.
Publicitário, escritor e vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE-SP). Autor do romance “Através”.