ARTIGOS

Macbeth, o belo e o feio

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Por RICARDO A. FERNANDES, ricardoasfe@gmail.com
redacao@jb.com.br

Publicado em 02/04/2022 às 10:16

Alterado em 02/04/2022 às 10:16

Nunca fui fã dos programas dominicais de TV. Quando criança, associava as trilhas sonoras aos compromissos do dia seguinte, o que me causava certo embrulho no estômago. No máximo, assistia a um jogo de futebol. E a eventual derrota do meu time era sinal de uma semana nada promissora: gozação dos colegas, além das notas baixas no boletim e aulas de recuperação de matemática.

Hoje em dia, aos domingos, evito a TV. Ainda mais após às 8 da noite, quando o sono bate e a maior preocupação é com a sonolência no dia seguinte. De modo que perdi premiação do Oscar. Não me arrependo, especialmente ao saber, na segunda-feira após a cerimônia, do acontecimento estapafúrdio entre o ator Will Smith e o comediante Chris Rock.

Mesmo assim, por curiosidade e porque gosto de cinema, procurei pelos títulos dos indicados a melhor filme. E, surpreso, não vi “A Tragédia de Macbeth” na lista. A forte atmosfera em preto, branco e sombras criada pelo diretor Joel Coen e equipe é digna de nota. Assim como a atuação firme, segura e intensa de Denzel Washington como protagonista que deseja o mais alto posto.

Mas se o filme – assim como a peça – é também sobre a busca de Macbeth pelo trono, a chama que incendeia essa busca é soprada pelas mulheres. E é Frances McDormand, intérprete de Lady Macbeth, quem rouba a cena e nos faz esquecer da tela para entrar de vez na história de poder e ganância. Ao chamar espíritos que satisfazem as ideias de morte, a esposa do general lhes pede que tornem espesso seu sangue. “Venham aos meus seios de mulher”, prossegue, “e substituam meu leite por fel”.

Conhecedora das fraquezas do marido, faz seu desejo o do homem, infla sua cobiça e afasta fraquezas, obstáculos às ações para os levar ao reinado. “Unsex-me” – ou “Assexualizem-me”, conforme a legenda – pede aos espíritos, para eliminar qualquer rastro de bondade que a afaste dos seus objetivos.

Em um mundo onde reina a ideia de bondade e felicidade, “A Tragédia de Macbeth” não joga a luta por poder, ganância e traição para baixo do tapete da sala. E quem poderia nos revelar que pouco evoluímos de 400 anos para cá? Basta ver o filme de Joel Coen para se dar conta da atualidade da obra de Shakespeare e suas bruxas. Bruxas, aliás, que andam meio esquecidas.

Quando o general Macbeth e seu colega Banquo voltam vitoriosos, encontram a bruxa, interpretada pela excepcional Kathryn Hunter, que lhes saúda, profetiza o futuro e sopra a discórdia. Na peça original, são três bruxas. No filme, uma apenas, que se revela mais duas em reflexo no lago a seus pés. Tempos modernos? A bruxa, consciência do homem, no purgatório, espelho do céu e inferno?

“O belo é feio e o feio é belo”, diz, na peça, uma das feiticeiras. Na volta da batalha contra os noruegueses, Macbeth diz a Banquo nunca ter visto dia tão belo e tão feio. O general refere-se à recente vitória, mas também à névoa que cobre as paisagens escocesas. Não imaginam, os altos comandantes, a batalha que lhes aguarda, o futuro profetizado.

Pouco depois de estapear o comediante Chris Rock e antes de receber a estatueta, Will Smith, atordoado no intervalo da cerimônia, recebeu o conselho do intérprete de Macbeth: “Tome cuidado! Em seus melhores momentos é quando o diabo vem atrás de você.”

Que dia belo e dia feio deve ter tido o vencedor do prêmio. No purgatório terreno, o paraíso à sua frente, já havia descido ao inferno. O diabo anda ligeiro.

Publicitário, escritor e vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE-SP). Autor do romance “Através”.

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