Política através do espelho
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No futebol, como não nos cansa de lembrar o técnico rubro-negro Dorival Junior, “a distância entre o céu e o inferno é de apenas um palmo”. Na política, bem como na economia, um abismo parece separar convicções da prática.
Ao longo dos últimos meses, temos acompanhado pelos noticiários posições e decisões do governo brasileiro e americano, que parecem convergir, a despeito de orientações políticas opostas. Tão surpreendente quanto esse comportamento espelhado entre propostas de governos distintos são as respostas da oposição e de parte da mídia, de lá e cá, revelando uma certa inconsistência.
Para citar alguns exemplos, consideremos os desdobramentos da política econômica emergencial em resposta à pandemia, que contribuiu para um cenário de grave desequilíbrio fiscal na maioria das economias, incluindo Brasil e EUA.
Por lá, tanto Trump quanto Biden promoveram farta distribuição de cheques e transferência de renda para tentar suavizar o impacto devastador que a pandemia trouxe para diversos setores da economia americana. O tamanho do estímulo adicional no governo democrata, no entanto, foi questionado por críticos que alertavam para uma bomba inflacionária que não tardaria a explodir. No Brasil, o Benefício Emergencial e o Auxílio Brasil foram respostas do governo para socorrer a população e as empresas em tempos excepcionais, com consequências fiscais adversas. Em ambos os casos, essas medidas contribuíram para um ambiente inflacionário, tornando os governos brasileiro e americano alvos de críticas de seus opositores.
Na busca por medidas para enfrentar a inflação, o governo de Joe Biden flertou com medidas heterodoxas de controle de preços, acusando empresas de se aproveitarem do desarranjo da economia para promover reajustes abusivos e tentar extrair lucros maiores (price gouging). Lembremo-nos que essa tentativa foi duramente denunciada pelos republicanos. Por aqui, atribui-se ao Ministério da Economia a recomendação para que supermercados e a indústria congelassem seus preços por dois a três meses, principalmente dos alimentos. Obviamente, os críticos do governo não tardaram a atacar o Ministério por seu pretenso liberalismo econômico.
Como tudo pode piorar, o início do conflito Rússia-Ucrânia lançou mais gasolina na fogueira da inflação, com uma escalada no preço dos derivados do petróleo. O governo brasileiro levantou a bandeira pela retirada de impostos sobre os combustíveis, no âmbito federal e estadual, com efetivos resultados no valor pago pelo consumidor na gasolina e no diesel. Estranhamente, pouco se falou, por aqui, que o governo democrata, de centro-esquerda, também havia proposto ao Congresso americano a suspensão por três meses de impostos federais sobre os combustíveis, como forma de tentar estancar a sangria de sua popularidade nas bombas de gasolina (US Fuel Tax Holiday Plan). Dentre os defensores dessa proposta do governo Biden destacava-se Paul Krugman, democrata de primeira hora, colunista do The New York Times e Prêmio Nobel de Economia.
Ainda sobre preços, agora aparentemente menos descontrolados após todas as medidas e elevações da taxa de juros que vêm sendo implementadas em diversas partes do planeta, Paul Krugman, em artigo e tweet recentes, atacou ironicamente aqueles que não reconhecem que a inflação estaria começando a ceder nos EUA. Por aqui, a divulgação de que os preços cederam em julho, influenciada pela queda na gasolina e na energia, foi seguida por ceticismo e por muitos alertas sobre um maior custo dos alimentos para as famílias.
Outra decisão que parece ter sido combinada entre os governos brasileiro e americano é o perdão à dívida em empréstimos e financiamentos a estudantes universitários. Nos EUA, os republicanos e os políticos de direita não se cansam de detonar a medida do governo Biden, que ganhou destaque e manchetes durante essa semana, de perdão para a dívida bilionária contraída por estudantes em universidades de lá. Aqui no Brasil, o governo Bolsonaro sancionou legislação concedendo descontos de até 99% em dívidas sobre contratos do Fies firmados até 2017. Neste ponto, parece ter havido consenso entre governo e oposição, na medida em que houve grande apoio à aprovação do projeto no Senado. Mesmo assim, o projeto aprovado no Congresso foi alvo de muitas críticas, sob a acusação de oportunismo eleitoreiro por parte do governo brasileiro.
Esses fatos narrados ilustram como governos de orientação distintas têm seguido políticas e ações similares em resposta a ameaças parecidas. As convicções ideológicas nessas decisões parecem ter um peso menor do que o pragmatismo político requer. No espelho, as imagens refletidas mudam de lado, a esquerda ficando à direita. A reação da oposição a esses governos nos deixa curiosos sobre como seria a cobertura e o noticiário político e econômico caso os papéis fossem invertidos e a Fox News, por exemplo, tivesse que cobrir e noticiar sobre os acontecimentos daqui.
Marcos Lemos, PhD em Economia e Reitor do Ibmec