ARTIGOS

Proselitismo e intolerância religiosa

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Por DANIEL GUANAES

Publicado em 05/01/2023 às 11:35

Alterado em 05/01/2023 às 11:39

Desde o ano de 2007, em 21 de janeiro é comemorado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data evoca a mejmória de Mãe Gilda, líder candomblecista vítima de violência religiosa em outubro de 1999. Ela e o marido foram perseguidos, sofreram várias agressões físicas e verbais, além de depredações do seu espaço religioso. Como desdobramento da violência sofrida, em 21 de janeiro de 2000 Mãe Gilda teve um infarto fulminante e morreu. Tal episódio, que infelizmente está longe de ser um caso isolado, foi transformado num marco pela conscientização do respeito necessário para que avancemos enquanto sociedade.

Existem diferentes motivos que levam à intolerância religiosa. Um deles me parece particularmente perigoso, pela sutileza do seu caráter nocivo. Refiro-me à maneira como muitas vezes o proselitismo, elemento próprio das vivências religiosas, é praticado pelos seus adeptos.

Toda religião carrega em si um ímpeto proselitista, e isto não é necessariamente um problema. É próprio de quem acredita em uma ideia, vive uma experiência de fé e deseja partilhá-las com terceiros. A liberdade para professarmos ou recusarmos qualquer credo religioso conforme nossa consciência e desejo julgarem melhor é uma conquista civilizatória.

Por vivermos em um país no qual tal garantia constitucional já está consolidada, nem sempre nos damos conta do privilégio que é desfrutarmos deste tipo de liberdade. Infelizmente nem todas as sociedades contemporâneas contemplam esse direito aos seus cidadãos. Em pleno século XXI ainda há no mundo teocracias que subtraem do seu povo a escolha da confissão religiosa que desejarão ou não praticar. Há também na história modelos de Estados que proíbem aos seus o exercício público de qualquer religião. Todos estes, penso, são cenários incompatíveis com o ideal de liberdade tão caro ao progresso social.

Seja qual for o seu tipo, a religiosidade faz parte da vida da maioria da população mundial. Falar daquilo em que se crê é um impulso natural de um fiel. Legítimo que seja, entretanto, o proselitismo parece carregar consigo alguns riscos, caso exercido de forma irrefletida. Impertinência, inconveniência e insensibilidade, por exemplo, são fronteiras que prosélitos muitas vezes são acusados de cruzar nesse processo de testemunhar a sua fé. Desagradáveis, nenhuma delas é tão grave quanto outra, que, embora muitas vezes apareça disfarçada, parece estar cada vez mais presente no mundo: a intolerância religiosa.

Em 2021, casos de intolerância religiosa aumentaram quase 141% em relação ao ano anterior. Vale destacar que os registros de tal tipo de violência não contabilizam apenas as suas vítimas, mas também os seus agressores. Neste quesito, boa parte dos que praticam intolerância religiosa são igualmente religiosos, só que de outras matrizes. Ou seja, muitas vezes o que entra em jogo em nome do “quero partilhar com você o que eu acredito” é o “você tem que acreditar no que eu acredito” ou o “você não pode continuar acreditando no que você acredita”. Constrangimento, intimidação e coação são deturpações do direito de fazer proselitismo.

Reafirmo o que disse no início deste texto: a igualdade religiosa e a laicidade do Estado brasileiro garantidas no art. 5º da Constituição Federal de 1988 são conquistas civilizatórias a serem celebradas. Não obstante, cabe à boa consciência a lembrança de que proselitismo é bonito quando o seu exercício contempla tanto a liberdade de quem convida, quanto a de quem aceita ou recusa. Se não for assim, acontece o que certa vez alertou o escritor peruano Mario Vargas Llosa: a ideia de trazer paraísos à terra equivale, muitas vezes, a construir verdadeiros infernos.

 

Daniel Guanaes é formado em Teologia e Psicologia, e obteve seu PhD em teologia pelo Departamento de Teologia, Filosofia e História da Universidade de Aberdeen, Escócia. Atua como pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e como psicólogo clínico.

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