ARTIGOS
A dignidade restaurada
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 08/01/2023 às 05:16
Alterado em 08/01/2023 às 05:27
...mesmo assim, os fogos de artifício iluminaram os céus do Brasil no dia 31, último de um ano tenebroso em que nossa resiliência foi levada a extremos impensáveis.
Mesmo assim, lotamos praias e agradecemos entre abraços e lágrimas nossa sobrevivência, desafio do ano, não importa em que escaninho social se trafegasse, na rota dos excluídos de sempre, ou na dos enganados de turno, embalados numa arenga obscena pela violência, pela mentira e pelo baixíssimo nível intelectual. A incultura encastelada.
Mesmo assim, andava-se em passo recalcitrante e de olho em giroscópio tal a baderna das vésperas em Brasília, onde se saqueou uma porção da cidade, incendiaram criminosamente o patrimônio e, para cúmulo, se tentou invadir uma delegacia policial e, mesmo assim, sem encontrar e encarcerar um único suspeito, apesar das televisões repassarem ininterruptamente as imagens nítidas e selvagens.
Mesmo assim, nos dias subsequentes, tramoias terroristas alheias à nossa cultura se revelaram a tempo de evitar uma carnificina no aeroporto de Brasília.
Mesmo assim, do mais alto cume da responsabilidade cívica não se ouviu uma palavra minimamente enérgica em favor da ordem, do respeito à decisão do povo em eleições tingidas de manobras populistas.
Mesmo assim, circulavam boatos inquietadores sobre a possibilidade de atentados à integridade física do presidente eleito, a quem se recusava passar a faixa presidencial, tradição, respeito e rito da Democracia.
Mesmo assim, no primeiro dia do ano de 2023, num céu de azul pintado por Oscar Niemeyer, conhecedor como ninguém do efeito da luz sobre a massa de concreto e vidro de Brasília, um Estadista sobe a rampa presidencial cercado pelos representantes dos excluídos, dos esquecidos de nosso povo que, com nobre e inegável altivez, lhe entregam a faixa presidencial.
Um tapa de luva de pelica na monstruosidade do teatro armado para pespegar no presidente a alcunha de líder bastardo.
E, então, mesmo sendo tudo assim tão paradoxal e contraditório, do alto do parlatório de mármore, na Praça dos Três Poderes, uma multidão liberta e incontida ouviu o que certamente terá sido o maior discurso de união e patriotismo neste século 21 de tantas e amargas vilanias cívicas no Brasil e mundo afora.
Lidas na voz fatigada pela peregrinação, frases, soterradas no aluvião e no pântano de tantos anos de mentiras, ameaças e quase delírios, surgem como esperança na primavera do recomeço, da reconciliação e do resgate.
Diz o Estadista: “Ainda que nos arranquem todas as flores, uma por uma, pétala por pétala, nós sabemos que é sempre tempo de replantio, e que a primavera há de chegar. E a primavera chegou”.
A voz do Estadista quebra com o soluço da dignidade diante de uma verdade que o condoía por reconhecer nela o maior crime contra seu povo.
“A desigualdade e a extrema pobreza voltaram a crescer. A fome está de volta - e não por força do destino, não por obra da natureza, nem por vontade divina. A volta da fome é um crime, o mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro”.
“Nesses últimos anos vivemos sem dúvida um dos piores períodos da nossa história. Uma era de sombras, de incertezas e de muito sofrimento. Mas esse pesadelo chegou ao fim, pelo voto soberano, na eleição mais importante desde a redemocratização do país”.
“Precisamos, todos juntos, reconstruir e transformar o Brasil. Mas, só reconstruiremos e transformaremos de fato este país se lutarmos com todas as forças contra tudo aquilo que o torna desigual”.
Transcrevi essas pequenas porções do discurso no parlatório com uma única intenção. Talvez ingênua, talvez mal compreendida, mas que o peso dos meus 82 anos de vida impõe que a enuncie.
Quando, nos últimos quase 40 anos de regime democrático, ouvimos um apelo tão direto e ao mesmo tempo tão genuíno de voltarmos a nos amar e a amar nossa nação e nosso povo? Certamente não nos últimos quatro anos quando aprendemos a conjugar o ódio em todas suas formas passivas e ativas do não-ser.
O que nos trouxe Lula de volta, foi a consciência de que caminhávamos para a secessão civil, com forte possibilidade de que nosso território fosse primeiro partido, depois dividido e finalmente ocupado pelas hienas a rir enquanto nos odiamos.
Trouxemos Lula de volta porque ainda temos caráter. Lula aceitou voltar porque sabe que sua história de vida, seu destino, é transformar este país no lar de um povo digno, revoltado contra a miséria e a violência a nos fazer temer nossos irmãos, nossos compatriotas.
Estamos chegando ao fim, no Brasil e no Mundo, dos anos mitômanos inaugurados pelo casal entrópico Reagan-Thatcher em que se defendeu um capitalismo desregulado, cujas consequências nos levam a uma globalização iníqua e a uma antropofágica forma de vida.
Não há como explicar a política de terra arrasada promovida pela ideologia de Paulo Guedes a não ser como expressão de uma indiferença totalitária e desumana, criminosa e separatista.
A desigual distribuição da renda nacional nos levou a ilhas de enriquecimento em um mar de injustiças, onde se pretendeu comprar o silêncio e o compadrio através de mecanismos medievais de que o Orçamento Secreto é apenas um dos aspectos mais salientes.
O ódio aqui plantado pela ideologia da cobiça e da desonestidade teve ainda o infausto resultado de confundir valores humanos com preceitos religiosos numa mistura explosiva para a matriz de nosso sincretismo religioso. Houve sim um deliberado, metódico e criminoso trabalho de jogar brasileiros contra brasileiros com o estímulo à compra de armas, ao racismo e ao sempre inesquecível “perigo comunista”, estandarte dos passistas das escolas de samba do capitalismo predatório, cujo "oficial do dia“ atende pelo nome de Trump, que nunca escondeu seu compromisso com o poder a qualquer preço, inclusive o da liberdade.
Nesta ladainha demoníaca nossos líderes mergulharam como bonecos de ventríloquos com o claro projeto de transformar o Brasil num subcapítulo do novo colonialismo iniciado nos anos 70 do século passado.
Como bem nos alerta o discurso do parlatório, só uma frente ampla e determinada a repor em seus devidos lugares os princípios da solidariedade humana e da Democracia representativa, com seu sistema de independência dos Poderes, poderá nos salvar de um novo mergulho nas trevas de um autoritarismo canhestro e castrense. Este o tabuleiro em que se joga a nossa sorte como nação.
Resta saber se estaremos à altura de entender a mensagem com que o destino generosamente nos presenteou.
A hora de o Brasil mostrar sua dignidade bate à nossa porta. Não baterá mais uma vez. E já sabemos a cor e o fedor da alternativa.
*Embaixador aposentado