ARTIGOS

Viver sem perder a alma

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Por DANIEL GUANAES

Publicado em 23/02/2023 às 21:02

Alterado em 23/02/2023 às 21:02

Duas das perguntas mais difíceis que todos temos de responder foram feitas por Jesus, numa de suas falas públicas às multidões que o seguiam: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?" e "Que daria um homem em troca da sua alma?". Os questionamentos do mais popular líder que a humanidade conheceu são, não apenas pertinentes, mas necessários para nos fazer pensar no tipo de jornada que construímos em nossa vida.

Existem duas questões nevrálgicas nesta fala do mestre de Nazaré: uma diz respeito à ideia da ambição; a outra, ao conceito de alma. E estão ambas presentes no texto. A primeira ideia aparece de modo implícito quando Jesus fala sobre “ganhar o mundo”. A segunda, explicitamente, quando ele menciona o risco de se “perder a alma”.

É curioso como, nos ambientes de fé, há quem encare a ambição como uma característica que antagoniza com a espiritualidade. Como se o desejo por mais fosse necessariamente nocivo. Ambição como sinônimo de anseio, de aspiração e de pretensão é força motriz. Neste sentido, acredito que a ambição seja uma ferramenta necessária para a vida, posto que nos faz caminhar.

Quando nos alegramos com o sucesso de alguém, geralmente expressamos o nosso desejo de que avancem, dizendo "ganhe o mundo"! De alguma forma, é uma maneira de celebrarmos o resultado da ambição pela qual se permitiram movimentar. Eis a razão pela qual, voltando à fala de Jesus, não acredito que o seu ponto tivesse a ver com o ganhar, mas com o ganhar que compromete a alma. E você não precisa ser um religioso para perceber como ele tem razão.

Alma não é tema exclusivo da religião. Entre outras ciências e saberes, sobre ela se debruçam pelo menos a Teologia, a Filosofia, a Medicina e a Psicologia. No texto que registra as perguntas de Jesus, "psyche" é a palavra grega em questão, e que traduzimos por alma. Dela derivam psiquê, psíquico, psicologia, psicológico, psiquiátrico, entre outras. Seu significado primário é “respiração, fôlego de vida, força vital que anima o corpo”.

Ou seja, a fala não é um questionamento de ordem religiosa, mas existencial. Perder a alma é constatar que alguma conquista nos roubou o fôlego de vida. É reconhecer que a intensidade com a qual nos dedicamos a um projeto foi tão desmedida que nos custou a força vital.

Eu classifico essas duas perguntas feitas por Jesus entre aquelas que, conquanto necessárias, são difíceis de lidar. Porque, no fundo, elas são uma denúncia. Elas nos fazem pensar nas vezes em que abraçamos projetos que nos custam a força motriz da vida.

Prazer? Carreira? Dinheiro? Felicidade? Liberdade? Relacionamento?

Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Que daria um homem em troca da sua alma? Todo indivíduo deveria fazer algumas vezes a si estes dois questionamentos. Não se trata da condenação de um projeto, mas da lembrança de que existem escolhas que nos roubam a vida, porque nos roubam o que nos mantém vivos. Nunca vale a pena correr atrás do que lhe rouba a força de viver. Ganhe o mundo, mas não perca a alma.

Daniel Guanaes é formado em Teologia e Psicologia, e obteve seu PhD em teologia pelo Departamento de Teologia, Filosofia e História da Universidade de Aberdeen, Escócia. Atua como pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e como psicólogo clínico.

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