É preciso saber viver
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Uma das representações mais consolidadas no imaginário popular acerca da religião talvez seja a de uma instituição cujo propósito é refrear desejos e coibir pulsões humanas. Uma espécie de ente, que existe para organizar a vida a partir do estímulo ao sacrifício e à repressão daquilo que julga ser demasiadamente humano e pouco espiritual. Eu não ousaria afirmar que tal representação esteja de todo desconectada da realidade por pelo menos duas razões: uma de ordem empírica e outra, epistêmica.
Do ponto de vista empírico, sabe-se que a repressão é uma ferramenta eficaz à lógica do domínio - ideal que permeia a práxis de não poucos ambientes religiosos. Construir um sistema de crenças e costumes ancorado em ameaças, riscos e medos produz bons resultados aos que se servem da manipulação de massas para a satisfação de interesses pessoais, sejam eles quais forem. Se por um lado é necessário afirmar que nem todos os ambientes religiosos se organizam a partir desta lógica, seria ingenuidade dizer que tais experiências não acontecem por aí.
Por outro lado, do ponto de vista epistêmico, a ideia do refreamento de desejos e da coibição das pulsões se explica por um fato sabido acerca da natureza humana: porque somos o que somos, com nossas contradições e idiossincrasias, há desejos que precisam mesmo ser refreados, e pulsões que precisam mesmo ser coibidas, seja para o bem do próprio indivíduo ou de terceiros. Se alguém, na liberdade da sua consciência, entende que a adesão a uma religião e à sua moral o ajudará a se organizar melhor no refreamento do que for necessário, mal nenhum há nisso.
A verdade é que, quer seja pelo propósito de manipulação por parte de alguns, quer seja pela necessidade de autorregulação dos desejos por parte de todos, a representação da religião como experiência associada apenas a tal conotação repressora não faz jus a tudo o que ela existe para ser. Sistemas religiosos existem para ser, sobretudo, propulsores do viver. São formas de organizações de crenças e saberes que encorajam as pessoas a potencializarem a qualidade das jornadas que percorrem no curso da sua existência.
No evangelho segundo Mateus, por exemplo, há o registro de uma conversa entre Jesus e um jovem que ilustra bem este fato. Respondendo ao interlocutor, que o havia procurado para saber como dar mais sentido à vida, Jesus o lembrou de que ele conhecia os mandamentos: não matar, não adulterar, não roubar, não dar falso testemunho. Na história, o interlocutor concordou, alegando não apenas conhecer, mas observar tais restrições. Mesmo assim, sua vida carecia de significado, razão pela qual ele tornou a perguntar: “então o que me falta?” Jesus reagiu à sua fala, dizendo “vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres”.
Para além do conteúdo da orientação, vale observar a pedagogia do caminho que o ensinamento de Jesus aponta. Ele orienta um homem de espiritualidade restritiva (não matar, não adulterar, não roubar, não dar falso testemunho) a experimentar um caminho de espiritualidade propositiva (ir, vender, doar). A história é interessante não por oferecer uma fórmula a ser reproduzida, mas por refletir uma sabedoria a ser adquirida: a vida sempre carecerá de sentido se todo o seu esforço estiver empenhado na tarefa de coibir pulsões.
Não vive bem quem empenha seus esforços e energia apenas para suprimir desejos. Há um universo de percursos e possibilidades existenciais agregadoras de sentido disponíveis a quem ousa, de forma propositiva, viver. Há muita gente como o jovem da história religiosa, cumprindo tudo o que supõe ser mandamento e cristalizando ainda mais o imaginário das espiritualidades como experiências repressoras dos desejos. Até há que se discernir, cada um de si para si, o que coibir e recolher. Mas existe mais a se descobrir. É preciso ousar, ir e fazer. É preciso saber viver.
Daniel Guanaes. PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo.