O in(v)(f)erno do neoliberalismo e a resistência da Democracia

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Por ADHEMAR BAHADIAN

Você pode escolher à vontade. Desde as manifestações contra a reforma previdenciária na França até a surpreendente revolta popular em Israel. Em ambas, e em muitas outras passadas e futuras, há a clara indicação do esgotamento do modelo neoliberal como fórmula aceitável de convivência social e de progresso econômico.

Até aí não há novidade, pois, o sacrossanto sistema financeiro internacional mostra sinais de esgotamento nervoso e provoca reações de suspeita e temor nos poupadores ou simples correntistas de bancos anteriormente julgados acima de qualquer suspeita, como os suíços e talvez muito proximamente os alemães.

Instala-se de forma cada vez mais endêmica uma óbvia tentativa de estimular saídas deste nó górdio pelo estímulo à opção totalitária ou pelo menos antidemocrática. O caso de Israel parece didático.
A tentativa de modificar as regras de composição e atuação da Suprema Corte de Israel, em muito lembra o mesmo coro desafinado recentemente no Brasil.

Em que pese a celebrada experiência e vivência política de Benjamin Netanyahu, não há como não ver em suas arriscadas manobras políticas o mesmo caldo de cultura já identificado em países comprometidos com o novo eixo autoritário de governança. Eixo a lembrar a aliança nazifascista dos anos 30 do século passado.

A tentativa de opção autoritária em Israel foi maciçamente rejeitada por amplo escopo político-popular em que partidos de centro-direita, direita e esquerda se uniram em manifestações populares resistentes ao aparato repressor policial.

Mais até: as Forças Armadas se opuseram claramente ao golpismo escancarado de Netanyahu, da mesma formaanteriormente enfatizada pelo Exército dos Estados Unidos, quando Trump pretendeu golpear as instituições democráticas nas eleições de 2021.

O que se torna mais transparente neste final de quase 40 anos de uma ideologia neoliberal astuciosa é a falência do pensamento mágico trazido por Reagan-Thatcher de que o mercado é dotado de mecanismo autoregulador e que a supervisão ou o disciplinamento do Estado é desnecessária ou contraproducente.

O que estamos a ver no chamado eixo da extrema direita, hoje ainda atiçado por ideólogos como o patético Steve Bannon, é a defesa não da Democracia e de seus clássicos mecanismos institucionais, mas a pregação pouco evangélica de retorno a um autoritarismo em que o líder carismático se sobrepõe a todo e qualquer controle democrático, sobretudo de um sistema judicial independente.

O pleito de Benjamin Netanyahu é ridiculamente ostensivo em sua proposta de transformar o judiciário num segmento auxiliar do Executivo.

Ao falar em risco de guerra-civil, Netanyahu atravessa a linha vermelha da soberania nacional e salpica no inconsciente coletivo o temor de ainda maior desarranjo político numa das áreas geopolíticas mais sensíveis do planeta.

A reação de Biden à manobra não poderia ser mais contundente, mas talvez será a diáspora judaica a que promoverá reações mais definitivas ao conluio de um Bibi com uma extrema direita fundamentalista religiosa e politicamente. Esquecida dos ideais democráticos dos grandes líderes fundadores de Israel, comprometidos com a convivência com uma Palestina independente.

A síntese que acabo de recordar, nos permite identificar os riscos que corremos os democratas nesta entressafra onde o neoliberalismo não morreu e o sucedâneo, qualquer que seja sua denominação, ainda não surgiu.

Em particular, há dois aspectos contraditórios em ebulição. O primeiro deles é a tentativa de impingir como democrático um regime autocrático como o vigente na Hungria. Outro, mais pernicioso ainda, e que surge, aqui e ali, como recidiva de doença maligna em certos setores da "inteligência" brasileira, é a defesa de um governo autocrático, com um Judiciário castrado, para impedir a sempre temida instalação no país de um regime comunista ou ateu. Fantasia do porte, porém sem o charme, do Sebastianismo em Portugal.

Qualquer das duas posições seja a de Viktor Orban, Erdogan, ou outros aprendizes de feiticeiros, seja a de um neo-imperador nativo iluminado, teria como consequência natural a inconstitucionalidade fragrante diante da Constituição de 1988. Alternativa subversiva a 2018 que, nos Estados Unidos da América, levou ao fim do "american way of life”.

A superposição de crise neoliberal e Pandemia aprofunda mecanismos de retração civilizacional com a rejeição a imigrantes, o agravamento da discriminação racial e quebra de valores tradicionais de solidariedade, agravada pelo crescente desnível de renda entre segmentos sociais.

Hoje, nos encontramos nesta disjuntiva: um projeto larvar de retorno ao autoritarismo de colorido totalitário ou a determinada convicção de que apenas a superação dos mecanismos esterilizantes do neoliberalismo poderá restabelecer uma sociedade convivial.

Minha impressão - sem ufanismo descabido - é a de que o Brasil talvez seja um dos países mais equipados social e materialmente para sair do impasse aparentemente insuperável em que nos encontramos. Mais até: um dos poucos com uma retaguarda climática, energética, territorial e agrícola expressiva a respaldar uma diplomacia com uma visão do futuro do planeta Terra, em que a expressão “Nações Unidas” não designaria apenas a sede de um organismo internacional à beira do East River, em Nova Yorque.

Para tanto, será necessário em primeiro lugar nos pautarmos pelos direitos e deveres inscritos em nossa Constituição de 1988, em especial na construção cotidiana do Estado de Bem-Estar Social, nossa meta maior. Em segundo lugar, mas tão importante quanto o primeiro, será lembrar que estamos todos no mesmo avião e que na hora da turbulência o caviar da primeira classe regurgita igual ao pão dormido da moçada.


XXXXX 


EM TEMPO: Recomendo a leitura do editorial “Democracias não prestam vênia a ditaduras” publicado na edição de 31 de março próximo passado de o “O Estado de S. Paulo”. Uma das melhores peças do jornalismo brasileiro.


*Embaixador aposentado