Pela revogação do Novo Ensino Médio

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Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO

Há muito o Ensino Médio enseja críticas acaloradas. Segundo seus detratores, o antigo “2º Grau” deveria ser reformado por ter uma grade inchada, com 13 disciplinas, estar desconectado dos estudantes e de ser elitista, já que prioritariamente voltado para o ingresso no Ensino Superior. Por isso, já não atenderia às expectativas do alunado e da sociedade, tendo como principais resultados altos índices de reprovação e evasão escolar.

Para sanar esses problemas e reposicionar o Ensino Médio, em 2017 foi proposto o Novo Ensino Médio (NEM). O NEM prevê o aumento progressivo das horas cursadas, a diluição de disciplinas tradicionais como Física, Geografia, Química, História, Biologia e Sociologia em cinco áreas do conhecimento, a saber, Matemática, Linguagens, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Profissional, além da substituição da formação geral, universalista, pelos chamados "itinerários formativos", de livre escolha dos estudantes, que podem ou não ser integralmente ofertados pelas escolas ou redes de ensino. Os cinco itinerários possíveis são: Linguagens e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da natureza e suas tecnologias, Ciências humanas e sociais aplicadas e Formação técnica e profissional.

Para seus defensores, o NEM contribui para a implementação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) do Ensino Médio, aprovada em 2018, além de ampliar as horas diárias de permanência do aluno na escola. Logo, ele atenderia às expectativas e necessidades dos estudantes, fortalecendo seu protagonismo e orientando suas escolhas conforme suas preferências, necessidades e projetos de vida. Menos conteudista e mais conectado com o mercado de trabalho, ele garantiria ao jovem uma formação básica satisfatória, significativa e conectada com as novas realidades sociolaborais. Mas isso não é bem assim.

Patrocinado por megaconglomerados educacionais e por fundações privadas, dos quais o ministro Camilo Santana é um porta-voz, o NEM parece um Cavalo de Tróia. Sob o manto da modernidade, encontra-se um modelo imposto de modo abrupto, sem a participação de professores, estudantes, técnicos-educacionais e outros segmentos relevantes, como pesquisadores e familiares. Fragmentador, ele rompe com a disciplinaridade sempre presente na educação brasileira, transformando disciplinas formativas em áreas de conhecimentos amorfas, que fazem um pout-pourri de matérias e precarizam ainda mais a educação. Além disso, na prática, a tão propalada “liberdade de escolha” dos itinerários formativos pelos estudantes, vem se materializando em “matérias” esdrúxulas como “O que rola por aí?”, “Brigadeiro Caseiro” e “Mundo Pet”, frequentemente ministradas por “amigos da escola” e professores leigos sem qualquer formação acadêmica, capacitação para o magistério e experiência prévia com o trabalho escolar.

Por essas e outras razões, o NEM vem sendo alvo de críticas sistemáticas. Implantado na prevalência de uma extrema direita pouco ilustrada e avessa à criticidade inerente ao conhecimento, ele possui vícios insanáveis. Em primeiro lugar, parte da visão de que os problemas mais graves da educação resultam da precariedade docente, quando não de uma visão anacrônica e distorcida, segundo a qual o professor é visto como reprodutor de ideologias subversivas e, portanto, um inimigo dos jovens e de suas famílias, que está a serviço de doutrinações comunistas. Neste cenário, o docente, a escola e a própria educação são deslegitimados por terraplanistas, “tios do WhatsApp”, subcelebridades, blogueiros e outros formadores de opinião.

Além disso, o NEM oculta todo abandono histórico da educação, tanto no que concerne a formação, condições de trabalho e remuneração dos professores, como naquilo que diz respeito à infraestrutura escolar, às concepções didático-pedagógicas e aos objetivos sociais da educação. Igualmente, não problematiza as condições reais de ensino-aprendizagem nas diversas realidades brasileiras, desde os rincões amazônicos até a periferia das grandes cidades, que vivenciam diferentes formas de exclusão, marginalização e violência. Por fim, elide o fato de que, nas escolas de excelência, frequentadas pelas elites, a disciplinaridade do ensino e sua universalidade prevalecem sobre as “novidades” dos itinerários formativos e outras quimeras.

Por sua concepção, estrutura e forma de implementação, o NEM vem trazendo um enorme empobrecimento para a educação brasileira, em especial à juventude periférica, isto é, aos mais pobres, cujo capital cultural é mais frágil. Em seus aspectos centrais, a reforma do Ensino Médio, na verdade, deforma sobremaneira este segmento escolar, impondo uma perspectiva reducionista e empobrecedora, que tende a formar trabalhadores braçais, quando não meros empreendedores de si mesmos, ifoodizados e incapazes de entender a realidade na qual estão inseridos. Será isso que os “tubarões” do ensino entendem por meritocracia?

Por estes e outros vícios, o NEM teve sua implantação suspensa pelo governo federal, após forte reação de professores e estudantes. Mas é certo que esse freio de arrumação não basta: o NEM não tem salvação, tendo que ser integralmente revogado. Se um dos legados dos governos Lula foi democratizar o acesso ao Ensino Superior. O NEM, ao rebaixar a qualidade da educação ofertada aos mais pobres, não apenas trai esse legado como aprofunda o fosso entre o trabalho braçal e o trabalho intelectual, entre o bancarismo tecnicista e a excelência educacional, humanista, reflexiva e conectada ao mundo, enfim, entre uma educação formalista, oca e insípida, e outra, significativa, capaz de fulminar as desigualdades sociais que estruturam nossa sociedade em favor de um país mais justo, livre e democrático, no qual a educação seja veículo de emancipação, não de opressão.

 

Lier Pires Ferreira
PhD em Direito. Professor Titular de Sociologia no Colégio Pedro II

Renata Medeiros de Araújo
Mestre em Ciência Política. Advogada