Privatização da Fé

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Por DANIEL GUANAES

Uma recente pesquisa feita pelo instituto Barna Group revelou que 56% dos cristãos adultos dos EUA compreendem a fé como uma experiência exclusivamente de foro privado. O dado é no mínimo curioso para uma religião em cuja síntese está a máxima “ame o próximo como a si mesmo”, e para a qual as reuniões sempre foram centrais. A despeito das peculiaridades culturais que nos distinguem da realidade norte-americana, me pergunto se os resultados seriam tão diferentes caso tal pesquisa fosse conduzida no Brasil. Os desdobramentos do cenário pandêmico que atravessamos nos últimos anos me fazem ter essa suspeição.

Em 2020, nos privamos dos ajuntamentos por motivos sanitários, absolutamente compreensíveis. Quando as normas começaram a ser flexibilizadas, e os cultos públicos foram retomados, lideranças eclesiásticas se depararam com um fenômeno peculiar: o de pessoas que justificaram o não retorno aos encontros presenciais por motivos de comodidade. Para muitos, não se tratava de um fator de saúde, mas de praticidade mesmo. Bastava acessar o culto remotamente, ao vivo ou on demand, consumi-lo e desconectá-lo.

O que parecia emergir nas entrelinhas dessas falas era a crença de que a construção interpessoal na experiência da fé é um fator adjacente, de importância secundária. Desde que um indivíduo se “abasteça espiritualmente” (seja lá o que isso signifique), o resto é dispensável.

Esse novo contorno de experiência religiosa, que tanto eu quanto outras lideranças eclesiásticas vimos crescer, antagoniza não apenas com o espírito fraterno cristão, mas da maior parte, quiçá de todas, as expressões religiosas. Um dos propósitos da religião é fomentar espaços de socialização, e os encontros regulares entre homens, mulheres, ricos, pobres, crianças, jovens, adultos e idosos, promovidos pelos ajuntamentos dos povos de fé, são um laboratório social. Eles estimulam diálogo, promovem respeito, fomentam escuta, possibilitam o serviço e criam laços, entre tantas outras coisas positivas.

É evidente que existe um elemento subjetivo e individual na experiência da fé. Algo que tem a ver com a experiência da devoção de um coração que se abre para o transcendente e ali acolhe sensações e memórias particulares. Entretanto, talvez um dos grandes desafios das religiões, no momento, seja dar atenção ao que, de tão basilar, jamais cogitamos um dia requerer de nós esforço para manter: a certeza de que a potência da nossa fé é coletiva. Afinal, sob o risco de privatizarmos a fé, cabe lembrar que até mesmo para se formar um indivíduo é necessária toda uma comunidade.

 

Daniel Guanaes. PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo.