Bezerra usou R$ 330 milhões do governo para projeto político do filho
Ex-líder de Bolsonaro no Senado ganhou verba "extra parlamentar" em negociação pré-emendas de relator
Em seu galpão de trabalho em Petrolina (PE), a 713 km do Recife, o escultor Ranilson Viana, 34, conta sobre a obra que fez para representar o político Osvaldo Coelho, morto em 2015, que exerceu o cargo de deputado federal por Pernambuco em nove mandatos. "A escultura que fiz procura mostrar a força que ele teve para trazer a irrigação para Petrolina. Simboliza a chegada da irrigação e o aumento da fruticultura. Aí começou a nossa riqueza", diz.
A escultura, que custou cerca de R$ 100 mil aos cofres públicos e foi instalada em Petrolina no prédio do órgão federal Codevasf, em 2018, é uma homenagem àquele que é chamado de "patrono da irrigação" por aliados.
Nos dois anos seguintes, já sob a Presidência de Jair Bolsonaro (PL), coube ao sobrinho de Osvaldo o papel de maior destinador de verbas para a unidade regional do órgão federal. Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo no Senado até o último dia 15?, foi o responsável por endereçar R$ 330 milhões em um período em que o filho dele, Miguel Coelho (DEM), ocupa o posto de prefeito municipal e se lança como candidato ao governo estadual.
A abundância de recursos vinda de congressistas é comemorada pela direção da Codevasf em documentos oficiais.
"A Codevasf tem vivenciado um período positivo, com expressivos incrementos na alocação e execução de recursos orçamentários, especialmente os oriundos de indicações parlamentares", afirma o órgão em relatório enviado em maio passado à Câmara Municipal de Petrolina, em resposta a requerimento do vereador Gilmar dos Santos Pereira (PT).
De acordo com esse levantamento interno, nos três anos imediatamente anteriores à gestão Bolsonaro, de 2016 a 2018, as indicações de parlamentares haviam levado à destinação total de pouco mais de R$ 90 milhões.
Porém, só nos dois primeiros anos da atual administração federal, o valor das emendas e outras formas de repasses por congressistas mais que quintuplicou na divisão da companhia com sede em Petrolina, chegando a R$ 490 milhões.
Mas esse incremento não resulta de uma maior força coletiva da bancada de Pernambuco na busca por recursos para a regional da Codevasf, mas sim do grande poder de Fernando Bezerra Coelho em carrear recursos para o reduto eleitoral de sua família no governo Bolsonaro.
Dos R$ 490 milhões do biênio 2019/2020, R$ 330 milhões tiveram a indicação do senador, ou seja, quase 70% do total.
Em relação a 2019, o valor de cerca de R$ 180 milhões foi repassado por meio da indicação do senador com a utilização de um mecanismo orçamentário chamado termo de execução descentralizada (TED).
A quantia foi dividida em quatro TEDs, e segundo o texto do termo de maior valor (R$ 120 milhões), tratava-se de "recurso proveniente de destaque orçamentário, indicado pelo Senador Fernando Bezerra, a ser descentralizado pela Secretaria Nacional de Desenvolvimento Regional e Urbano (SDRU)".
O presidente da Codevasf, Marcelo Andrade, usou a expressão "recursos extra parlamentares" para se referir à indicação de R$ 120 milhões de Fernando Bezerra, em documento de dezembro de 2019, segundo documentos obtidos pela Folha via Lei de Acesso à Informação?.
Questionado pela reportagem, o Ministério do Desenvolvimento Regional informou que nessa transferência "o senador apenas sugeriu a destinação do investimento, por se tratar de temas enquadrados no âmbito dos programas e ações do MDR".
Segundo o ministério, a proposta de TED foi elaborada pela Codevasf e a descentralização dos recursos foi aprovada após a análise técnica da pasta.
A verba foi obtida pelo senador antes da existência das chamadas emendas de relator, por meio de negociações diretas com o ministério para direcionar o recuso discricionário da pasta. A autoria da indicação está registrada em documentos ligados ao TED que estão publicados no site do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Estes rastros das indicações parlamentares ficaram mais escassos em 2021. A pasta comandada por Rogério Marinho, por exemplo, passou a apontar de forma genérica a autoria, atribuindo ao relator-geral do Orçamento.
As emendas de relator são atualmente a peça-chave do jogo político em Brasília responsável pela sustentação da base aliada de Bolsonaro no Congresso. A modalidade foi incluída no Orçamento de 2020 pelo Congresso, que passou a ter controle de quase o dobro da verba federal de anos anteriores.
Foi por meio das emendas de relator que Fernando Bezerra Coelho destinou R$ 150 milhões à Codevasf de Petrolina em 2020, chegando então ao total de R$ 330 milhões no primeiro biênio da gestão Bolsonaro.
No segundo lugar do ranking de congressistas que apontaram o dedo para a Codevasf de Petrolina está outro filho do senador que é político, o deputado federal Fernando Coelho Filho (DEM-PE). Por destinação dele, cerca de R$ 22 milhões foram para a unidade regional do órgão.
Além do grande volume de recursos vindos de seus familiares, outra mudança veio bem a calhar para o projeto político do filho do senador, atual prefeito de Petrolina, que quer ser governador de Pernambuco.
No âmbito da Codevasf, o sertão virou mar, sob o governo Bolsonaro. Em setembro do ano passado, a superintendência do órgão com sede em Petrolina teve a sua área de atuação expandida, deixando de abranger apenas o Vale do Rio São Francisco, passando a chegar a todo estado de Pernambuco, inclusive o arquipélago de Fernando de Noronha.
Também chama a atenção o fato de o uso das verbas destinadas à Codevasf em 2019 e 2020 não observar a tradicional vocação do órgão representada na escultura do chamado patrono da irrigação.
A repartição dos investimentos mostra que quase metade dos recursos, 47%, foi alocada na pavimentação de vias. Em segundo lugar nas prioridades, vem a compra de máquinas e equipamentos, com 28% do total. Somente depois aparecem a perfuração e instalação de poços (9%) e a recuperação e implantação de reservatórios hídricos (7%).
Relatório da CGU (Controladoria-Geral da União) de fevereiro deste ano, porém, aponta a concentração excessiva das obras de pavimentação na cidade governada pelo filho do senador.
"Nas notas técnicas encaminhadas à CGU acerca de pavimentação de vias, a unidade indica que 95% das vias selecionadas (528 vias) localizam-se no município de Petrolina, enquanto apenas 5% das vias (30 vias) localizam-se em outros municípios da área de atuação da unidade", alerta a CGU.
"As vias selecionadas não apresentam relevância para logística da produção e integração entre economias regionais, compondo-se exclusivamente de vias internas aos bairros, o que não indica uma escolha técnica, vinculada a ações de desenvolvimento regional", completa o órgão de fiscalização.
A Folha esteve há três semanas em Petrolina e constatou como estão sendo aplicadas localmente as verbas federais destinadas pelo congressista por meio de emendas do relator e outros tipos de transferência orçamentária.
Na região, a entrega de cisternas compradas com recursos carimbados com a marca do parlamentar tem sido condicionada ao apoio político ao grupo do filho do senador, como a Folha revelou em 5 de dezembro.
Essa indicação pessoal e sem critérios objetivos por meio de emendas ocorre ao mesmo tempo em que é realizado um desmonte do programa federal de entrega de cisternas, intitulado Programa Cisternas, que possui regras gerais e fiscalização social por conselhos municipais, associações e ONGs.
O senador também direcionou verbas para obras de pavimentação na cidade, mas o asfalto entregue ganhou até apelidos. É chamado de farofa ou Sonrisal, em referência ao esfarelamento dos trechos pavimentados. O material usado derrete com o forte calor e gruda nos calçados dos moradores e, quando ele se quebra em pedaços, começa a esfarelar.
Verbas também foram enviadas pelo congressista para a aquisição de cisternas, caixas-d’água, tratores, implementos agrícolas e tubos de irrigação. Porém, dezenas desses equipamentos são mantidos amontoados em depósitos do órgão federal Codevasf e já dão sinais de desgaste com o tempo. Alguns deles, como canos e reservatórios de água, estão lá há mais de um ano, segundo relato de moradores da região.
Mesmo influente na divisão dos recursos do governo, Bezerra recebeu 7 dos 78 votos de senadores ao disputar uma vaga de ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) no último dia 14. Decidiu, no dia seguinte, entregar o cargo de líder de Bolsonaro no Senado.?
A colegas, reclamou da falta de apoio do presidente e de ministros na eleição, vencida por Antonio Anastasia (PSD-MG).
A saída do congressista do posto de líder do governo deve catalisar o movimento de distanciamento do presidente Bolsonaro que o prefeito de Petrolina tem buscado em suas articulações de pré-campanha a governador de Pernambuco.
O objetivo, segundo interlocutores do prefeito da principal cidade do sertão do estado, é evitar que uma eventual postulação em 2022 seja contaminada pela elevada rejeição a Bolsonaro em Pernambuco.
Além disso, para enfrentar o PSB, que governa há 15 anos o estado, o grupo de Miguel Coelho quer atrair tanto líderes políticos da esquerda como da direita.
Questionada sobre se a escultura de Osvaldo Coelho não violaria o princípio da impessoalidade, a Codevasf afirma que "lei municipal de 2013 estabelece que em prédios públicos municipais, estaduais e federais de mais de mil metros quadrados deve haver exposição de obra de artista local, em caráter permanente".
"A lei estadual nº 17.086/2020 declara o ex-parlamentar patrono dos projetos de irrigação do estado de Pernambuco", segundo a nota.
Em relação ao relatório da CGU, o órgão respondeu que "as ações da Codevasf estão alinhadas com diretrizes da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) e da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU). Recomendações apresentadas à Codevasf por órgãos de controle são observadas e incorporadas aos procedimentos da Companhia, de acordo com sua aplicação".
Procurados pela reportagem, o senador Fernando Bezerra Coelho e o prefeito de Petrolina Miguel Coelho não se manifestaram. (Flávio Ferreira e Mateus Vargas/Folhapress)