Crescimento econômico não promoveu a inclusão social nas grandes cidades
Os avanços na renda e no consumo das massas permitiram que as famílias melhorassem o seu “espaço privado”. Todavia, não ampliou a “inclusão das famílias nas cidades onde residem”.
O artigo aponta para a gravidade da crise urbana, face dramática do nosso subdesenvolvimento. Para enfrentar essa questão, o autor defende políticas governamentais (habitação popular, saneamento e transporte público) portadoras de recursos financeiros e institucionais (pacto federativo e cooperação entre esferas de governo) compatíveis com a gravidade dos problemas acumulados nos últimos 50 anos.
Leia abaixo a íntegra do artigo de João Sicsú, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em mais um texto da parceria entre o JB e a Plataforma Política Social, que acontece todas as segundas, quartas e sextas.
"Da macroeconomia à inclusão social"
O Brasil mudou nos últimos dez anos. Mudou porque houve uma queda acentuada do desemprego, uma drástica elevação do valor do salário mínimo e uma significativa ampliação do crédito. O desemprego de dois dígitos caiu para menos que 6%. O salário mínimo subiu mais que 60% em termos reais. O crédito dobrou como proporção do PIB e, hoje, já é superior a 50%. Esses números mudaram a vida das pessoas.
O ciclo econômico de 2007-2010 foi distributivista de renda. Para milhões de desempregados, o ciclo teve uma qualidade especial: gerou empregos com carteira assinada. Um resultado: o afastamento econômico-social foi reduzido. O emprego trouxe renda e melhoria, por exemplo, para as habitações em favelas: abrigos de madeira foram substituídos por barracos de alvenaria. Eletrodomésticos, sofás e certos alimentos (até então, inacessíveis) foram adquiridos.
O emprego levou a classe média C e os pobres ao mercado de trabalho das localidades onde vivem ou trabalham as altas classes médias e os ricos. Esse foi o momento onde os mais necessitados perceberam que não basta ter emprego. O emprego é essencial, mas é preciso ter transporte, saneamento, iluminação, coleta de lixo, varrição, segurança pública, áreas de lazer etc... é preciso ter direito à cidade onde moram. Sob estas condições, indivíduos que já realizam o consumo (uma atividade privada) passaram a desejar o investimento (público) para todos.
O crescimento econômico e o emprego, portanto, podem melhorar as condições de vida de cada família dentro de cada casa, mas a vida do cidadão urbano contemporâneo se desenrola, em grande parte, na rua. A vida na rua, ou seja, o acesso à cidade, unicamente quem pode melhorar são as políticas públicas. Com mais renda, uma família pode melhorar o seu espaço privado – renda e emprego não são condições suficientes para que o cidadão tenha acesso a equipamentos e serviços públicos. A garantia de acesso universalizado a serviços e equipamentos urbanos somente pode ser dada pelos poderes públicos.
Um exemplo é importante: redes (e não apenas linhas) de transportes são necessárias porque indivíduos passaram a ter interesses variados. É a jovem adulta da classe C, de 19 anos, que estuda no colégio público do ensino médio, faz um curso de línguas, trabalha no comércio e tem vida social. Ela não precisa somente de uma linha de transporte que ligue a sua casa ao trabalho, tal como sua mãe precisava há 30 anos. Ela precisa de uma rede de transportes, assemelhada às redes neurais, com várias possibilidades, conexões e retornos. Ela precisa de ônibus, metrô, ciclovia e trem em várias direções, sentidos e com a possibilidade de rápido retorno em caso de mudança de plano.
A desintegração dos espaços metropolitanos (em centros e periferias) das grandes cidades ocorre devido à falta de planejamento urbano, falta de políticas habitacionais e ao desequilíbrio do gasto público – que prioriza regiões indicadas pela dinâmica da valorização imobiliária. Favelas e bairros periféricos das grandes metrópoles e das cidades do entorno são colocados à distância, também, devido à falta de investimentos em transporte público. Além disso, seus moradores são estigmatizados porque habitam regiões sem segurança pública, coleta de lixo e saneamento. Moram em regiões violentas, sujas e com esgoto a céu aberto. É um afastamento territorial e social de milhões de cidadãos.
Não há planejamento e gestão nas maiores cidades brasileiras e principais Estados da Federação. Há inauguração de obras. As campanhas eleitorais enfatizam as inaugurações de novas vias rodoviárias, dos novos hospitais, das novas pontes, das novas escolas etc. Mas, as novas vias de acesso não são mantidas e os novos prédios de escolas e hospitais não oferecem serviços proporcionais às pompas de suas inaugurações. Por parte de governantes, não há a preocupação com a entrega de serviços de qualidade e a manutenção dos equipamentos públicos das cidades e Estados. Há somente a inquietação com a necessidade de inauguração de obras, coincidindo com os interesses de construtoras, empreiteiras e da indústria automobilística.
A ligação entre o centro e a periferia é feita, principalmente, por via rodoviária: milhares de carros e ônibus superlotados formam todos os dias imensos engarrafamentos. Quando existem outras formas de transporte, porque receberam investimento inadequado, possuem horário irregular, são desconfortáveis, lentos, perigosos e não atendem a todos. Contudo, igualar a periferia ao centro não é uma questão que será resolvida apenas com meios de transportes públicos eficientes e acessíveis a todos. O distanciamento da periferia ao centro é, sobretudo, um distanciamento social. Portanto, o que aproximará as favelas, as cidades empobrecidas e os bairros degradados dos centros metropolitanos são políticas sociais e urbanas de diversas naturezas que possibilitarão o direito e o acesso à cidade, no sentido exato do termo.
As duas grandes linhas de pensamento da economia, o liberalismo e o planejamento, formam a base teórica das diferentes formas de governar o País, os Estados e municípios. Se no nível de governança nacional predomina o planejamento sobre o liberalismo, o mesmo não pode ser dito sobre os principais estados da Federação, suas capitais e grande parte das cidades de suas regiões metropolitanas.
O planejamento busca regular e redirecionar o poder econômico para realizar interesses coletivos. O liberalismo buscar estimular segmentos econômicos para realizar interesses particulares. O planejamento governa para as pessoas. O liberalismo governa para grupos e segmentos sociais específicos.
A governança pública dos principais Estados e grandes cidades é liberal, é feita em aliança política e econômica com grandes grupos econômicos. Muitas intervenções pontuais são realizadas nos espaços urbanos. Quando têm alcance meramente social são focalizadas, são de pequeno porte. Quando estão associados aos interesses privados são de grande porte.
As famílias da classe C, por exemplo, cresceram e foram economicamente incluídas no mercado de consumo devido às políticas do governo federal, mas continuam excluídas das cidades que moram. Houve inclusão social de cunho estritamente econômico. Contudo, inclusão social plena, e não apenas econômica, só poderá acontecer quando houver alinhamento de projetos nos três níveis de governo.
As políticas macroeconômicas e sociais do governo federal melhoram a vida das famílias basicamente dentro das suas casas, já que geram emprego, renda e concedem benefícios. As políticas do governo federal são limitadas para realizar a inclusão social das famílias nas cidades. O governo federal não pode, por exemplo, resolver os problemas dos transportes urbanos, do ensino médio e da revitalização de bairros e regiões - e só, parcialmente, pode tentar resolver o problema do acesso à saúde de qualidade, do saneamento e da moradia.
Em conclusão, a redução das desigualdades sociais para patamares civilizados somente será possível, portanto, com políticas e projetos sintonizados dos três níveis de governo, isto é, políticas urbanas devem ser coerentes com políticas macroeconômicas.
* pesquisador da UFRJ