PAC privilegiou obras faraônicas em lugar de infraestrutura básica nas favelas do Rio

Por Rogério Daflon

PASSARELA DA ROCINHA, R$ 15.000.000,00 - 5,4% do total do PAC na favela. SANEAMENTO NA ROCINHA, R$ 5.281.805,15 - 1,9% do total do PAC na favela. Foto: WILTON JUNIOR/AGENCIA ESTADO/AE

O Programa de Aceleração do Crescimento nas Fave­las (PAC-Favelas) no Rio de Janeiro surgiu de forma diferente do que ocorreu em outros 21 estados da federação. Embalado pelos megaeventos futebolístico e olímpico, em 2014 e 2016, respectivamente, o PAC na capital parecia querer simbolizar a incorporação de comunidades à cidade dita formal com obras espetaculosas de infraestrutura. A dissimulada e estrondosa meta baixou seu espírito nos PACs do Alemão, de Manguinhos e da Rocinha. Toda essa expressão da presença do Estado nesses extensos territórios foi traduzida pelo acordo de leniência, em que o grupo OAS expõe os arranjos para defraudar licitações com outras empreiteiras. Autor de tese de mestrado sobre o tema, o arquiteto e urbanista Nuno André Patrício diz que documento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) expõe que o objetivo do cartel, que agiu com o governo do estado, não era só dividir os polpudos recursos das intervenções nesses três lugares (R$ 1.941.033.837, 59% do total destinado pelo programa ao estado), mas garantir sua vitória nas licitações, induzindo a conclusão de que só os três consórcios seriam habilitados a executar as obras. Daí por que apareceram em cenários tão precários ideias como a de um teleférico que servisse parte do conjunto de favelas do Alemão, a elevação da linha férrea em Manguinhos e a passarela com a assinatura do arquiteto Oscar Niemeyer na Rocinha. O que o arquiteto estudou em sua dissertação de mestrado, no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foram os impactos desse arranjo nos territórios, deixando de lado ações prioritárias às populações.

Nuno André Patrício analisou as políticas públicas nesses locais com lupa. O arquiteto, que também integra uma pesquisa do Observatório das Metrópoles sobre o PAC-Favelas em todo o Brasil, discorre sobre o ajuntamento de comunidades do Alemão, descortinando uma chocante desarticulação urbanística, com o Consórcio Rio Melhor (Odebrecht, OAS e Delta) à frente. “No caso do Alemão, no projeto inicial os equipamentos urbanos e os núcleos habitacionais estavam muito mais bem distribuídos nas favelas ali. Mas, para diminuir o custo das obras e maximizar os lucros, os equipamentos passaram a se concentrar nas estações do teleférico, e os núcleos habitacionais foram deslocados para o entorno e nas partes mais planas. A biblioteca, que preliminarmente ficaria no Morro do Alemão, foi para a localidade de Palmeiras, onde fica a última estação do teleférico. Isso para diminuir o número de frentes de obra e, consequentemente, os custos”, detalha o arquiteto.

Quando ele analisa o sistema viário do Alemão, a tristeza com o desperdício se intensifica: “O sistema viário, que deveria atender urbanisticamente às demandas de mobilidade da população, acolheu as conveniências do teleférico, por conta da manutenção dos pilares do veículo suspenso por cabos, pois todo o pilar precisa ter uma rua para acesso para fins de manutenção. Assim, houve remoções e contenções, para fazer essas vias. Ou seja, uma malha urbana para atender a um requisito técnico, mais precisamente para atender à manutenção do equipamento”. Tanto que, acrescentou o urbanista, a Rua Joaquim de Queirós, que no planejamento seria toda alargada para melhorar a articulação do território com o entorno, nunca foi concluída, já que a prioridade era construir vias de acesso aos postes do teleférico.

Em termos habitacionais, diz o pesquisador, havia, a princípio, uma tipologia habitacional em que sobrados eram sobrepostos. Por pressão da empreiteira, ela foi abandonada por uma estrutura pré-fabricada, visando a uma maior rapidez de construção e, novamente, à diminuição de custo. “O consórcio subcontratou uma empresa chamada Bairro Novo para começar a produzir uma nova tipologia habitacional toda em concreto, muito mais rápida para construir, mas péssima para moradia. O resultado foram blocos todos iguais, todos de concreto, com espaços livres e de convivência de péssima qualidade. Trocou-se a qualidade pela rapidez e por um molde de concreto, um verdadeiro bunker de calor. Essa tipologia não se adapta a um terreno inclinado e foi quase toda ela instalada em terrenos planos, rompendo com relações de vizinhança”, afirma o arquiteto.

Não por acaso, o teleférico obteve 26% (R$ 254.599.507,46) dos recursos do PAC do Alemão, enquanto as novas habitações se limitaram a 14%. Ao todo, foram gastos no lugar R$ 972.080.536. Morador do Alemão, Davi Amen, integrante da ONG Raízes em Movimento, lembra que o teleférico sequer está funcionando. “As melhorias habitacionais e o saneamento básico [foram investidos R$ 157.114.211,48, 16% da verba] foram relegados a segundo plano. E vários acessos deveriam ser alargados. A Rua Laurinda, que liga a Rua Paranhos à Avenida Central, era, no projeto inicial, para dar acesso a transporte. Hoje, só passa carro em parte dela. O resto é uma grande escadaria. Pior, o teleférico serve apenas a cinco favelas do Alemão. Outras, como Mineiros, Lagoinha, Pedra do Sapo, foram abandonadas. Obras em torno do teleférico. ou em vias para chegar aos pilares entre uma estação e outra, é que eram importantes para o PAC”, descreve Amen.

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Saneamento básico foi preterido

O PAC-Favelas surgiu nacionalmente e no Rio de Janeiro em 2007. O volume de recursos destinados para as favelas foi algo sem precedentes. No Rio, ao todo, foram investidos R$ 3,3 bilhões. Diferentemente do Programa Favela-Bairro, em que houve financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), se trata de um recurso não oneroso, como observa o arquiteto Nuno André Patrício: “No Favela-Bairro era empréstimo do BID; no PAC, era investimento direto da União”. No PAC de Manguinhos, foram investidos, ao todo, R$ 691.703.151. À semelhança do que ocorreu no Alemão, uma obra faraônica roubou a cena de uma política pública que acabou ficando em xeque justamente pela opção por um urbanismo espetaculoso, no qual o governo do estado se subordinou às empreiteiras. O consórcio em Manguinhos foi formado pela Andrade Gutierrez, Camter e EIT. A obra mais complexa dele foi a elevação da linha férrea na Avenida Leopoldo Bulhões. O custo da intervenção: R$ 132.545.488,97 (19% do total investido na favela). Para Nuno Andre Patricio, a elevação da linha férrea, que foi justificada como um elemento de integração entre as favelas ali, não contou com estudos técnicos que embasassem sua viabilidade. “Tanto que ela teve um sobrecusto muito grande, por conta da falta de estudos geotécnicos. O PAC de Manguinhos tinha como prioridade o saneamento básico, e ele acabou não sendo solucionado”, diz ele. Pesquisadora do PAC de Manguinhos, Claudia Trindade lembra que o Ministério da Cidade questionou os gastos com a elevação da linha férrea em 2008, já que, como escreveu em sua tese de doutorado, “as obras de Manguinhos estavam vinculadas à rubrica de saneamento integrado”, que inclui abastecimento, esgotamento sanitário e drenagem, e contou com apenas 8,7% dos recursos, R$ 59.924.472,70. “A elevação da linha férrea consumiu a maior quantidade de recursos, em detrimento do que era fundamental: o saneamento. A população dizia isso nos encontros com o poder público, mas isso não foi levado em conta”, diz Cláudia Trindade.

Sobre a Rocinha, o arquiteto Patrício diz que, dos R$ 277.250.150 investidos, R$ 15 milhões (5,4% do total) foram para a passarela que liga a comunidade ao centro esportivo, que tem a assinatura do renomado Oscar Niemeyer. Com o consórcio integrado pela Queiroz Galvão, Carioca e Caenge, as intervenções ali também deixaram o saneamento básico de lado, que recebeu apenas R$ 5.281.805,15, 1,9% do montante. O morador José Martins diz que o valão principal de lá — ou seja, o mais poluído — está do mesmo jeito depois que as obras do PAC foram paralisadas. “Existia já uma passarela, que foi fruto de uma luta e de uma reivindicação da Rocinha. Ela foi destruída para dar lugar à do Niemeyer e para gastar mais recursos”, disse Martins, que faz uma ironia ao dizer por onde passa um dos trechos do valão principal a enfatizar o descaso com o saneamento: “Justamente embaixo da passarela”.

Amanhã: sem obras espetaculosas, PAC do Preventório salvou vidas em Niterói, nas enxurradas de abril de 2010