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Rio convive com cemitério de embarcações na Baía de Guanabara há anos, dizem ativistas
Por JB RIO com Agência Estado
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Publicado em 15/11/2022 às 19:57
Gabriel Vasconcelos - A colisão de um navio à deriva na Ponte Rio-Niterói interrompeu a rotina do carioca ontem à noite. Nas ruas, o engarrafamento chegou a 19 quilômetros em função da interdição da via por três horas e meia. Quem estava em casa assistiu a uma enxurrada de vídeos, que viralizaram nas redes sociais. Em meio ao alvoroço, só um grupo não se surpreendeu: os ativistas ambientais, que há anos denunciam a engorda do cemitério de embarcações que se tornou a Baía de Guanabara.
Em um dos vídeos de maior repercussão, um homem fazia churrasco em um barco de pesca enquanto observava a operação de reboque do navio fantasma. Segundo a Marinha, o cargueiro São Luiz estava ancorado na Baía de Guanabara desde 2016, à espera do desfecho de um processo judicial capaz de determinar sua destinação.
Há pelo menos quatro anos o navio não tinha um tripulante sequer e estava ancorado próximo à Ilha do Governador. Sob os fortes ventos no fim da tarde de ontem, as amarras de ancoragem desgastadas pelo tempo se romperam e o navio foi empurrado contra a Ponte Rio-Niterói. Houve dano à parte do guarda-corpo da via, sem maiores impactos estruturais. Esse foi o diagnóstico de duas vistorias feitas entre ontem e hoje por engenheiros da concessionária EcoRodovias.
Para ativistas que vivem o dia a dia da Baía de perto, o episódio é resultado de anos de descaso de autoridades estaduais e federais, responsáveis pelo meio ambiente e pela navegação. Eles incluem na lista o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Capitania dos Portos, ligada à Marinha.
O Movimento Baía Viva, ONG que monitora o estuário desde 1984, publicou nota dizendo que "o cemitério de navios que assombra há 30 anos a Baía coloca em risco a vida dos cariocas".
Os ativistas dizem alertar periodicamente as autoridades públicas sobre o risco de desastres ambientais nas águas da Baía, por conta do grande número de embarcações afundadas ou abandonadas na superfície há anos.
"Ao longo deste tempo cresce o risco de vazamento de óleo, outras substâncias químicas e metais pesados oriundos dessas embarcações, que apodrecem no fundo da Baía ou ancoradas no espelho d'água de forma precária e insegura, sem dispor da devida fiscalização periódica que deveria ser realizada por órgãos ambientais como o Inea ou o Ibama, nem mesmo pela Capitania dos Portos", afirmam os ativistas.
A ONG define como "hipocrisia" qualquer autoridade pública alegar desconhecimento ou negar a existência do cemitério de embarcações.
"No canal de São Lourenço, em Niterói, onde há cerca de três décadas mais de uma centena de barcos, chatas e outras embarcações de diferentes portes estão abandonadas, apodrecendo, há crescentes impactos ou prejuízos à pesca e o impedimento da navegação no trecho", afirmam.
Especificamente sobre o cargueiro São Luiz, a Marinha informou que a embarcação permanecia há seis anos e nove meses "fundeada em local predefinido pela autoridade marítima na Baía sem oferecer riscos à navegação". Provocada pelo Estadão/Broadcast sobre o quadro geral de abandono de embarcações, a Força não respondeu até o momento da publicação.
Não há levantamento preciso sobre o número de barcos abandonados nas águas da Baía. Fontes falam em dezenas de navios inutilizados ou envolvidos em imbróglios judiciais, que se somam ao lixo náutico - cascos, peças e equipamentos - e ao lixo urbano e esgoto despejado por municípios do entorno na Baía.
O jornalista e ambientalista Emanuel Alencar, autor do livro "Baía de Guanabara - Descaso e Resistência", afirma que levantamento obtido junto à Capitania dos Portos para a obra indicou 78 embarcações abandonadas na região, algumas há mais de 40 anos.
Problema antigo
O engenheiro mecânico e ex-secretário de Energia, Indústria Naval e Petróleo do Rio de Janeiro, Wagner Victer, menciona os esforços que fez no início dos anos 2000 para a retirada dos navios abandonados. O movimento não teve êxito devido ao que ele definiu como "jogo de empurra" entre a Justiça e autoridades públicas. Victer disse que a competência final é da Marinha, via Capitania dos Portos.
"Na época, avisei que teríamos acidentes, ambientais ou civis. Os ventos de ontem ficaram a 50 quilômetros por hora, mas a Baía convive com rajadas que podem chegar a 100 quilômetros por hora. Sistemas de âncoras não suportam isso. Nesses casos, é preciso que a tripulação levante âncoras e use propulsão. Esse navio (São Luiz) não tinha nenhum dos dois", diz Victer.
O episódio de ontem, afirma, é didático sobre o risco que representa um navio de grande porte abandonado na Baía, sem tripulação e sem propulsão ativa. "Uma embarcação naquela situação pode ser carregada pelo vento, sem ninguém para impedir, como aconteceu", diz.
"A Baía pode sim ter navios fundeados temporariamente, mas é preciso ter tripulação e sistemas ativos. Não deve servir de estacionamento permanente, cemitério de embarcações paradas, até porque guarda um grande obstáculo físico, que é a ponte", continuou.
O ex-secretário também mencionou os riscos de vazamento químico ou utilização dos equipamentos como entreposto para atividades ilícitas, como tráfico de drogas. Para ele, o episódio de ontem "saiu barato". "Poderia ter sido uma grande catástrofe. Mas há um lado positivo nisso tudo: acidentes costumam modificar procedimentos de engenharia. Espero que tenha servido para encerrar tão logo esse jogo de empurra tremendo que é a destinação desses barcos abandonados", disse.
Os navios abandonados na Baía têm sido alvo de reportagens nos últimos anos. Em abril de 2021, em resposta a material veiculado pelo portal Metrópoles, a Marinha informou que, então, na Baía de Guanabara, havia "aproximadamente de 10 cascos de embarcações fundeadas ou encalhadas por seus proprietários".
À época, a Marinha informou que as atividades de inspeção naval rotineiras "não apontavam para situações que implicassem comprometimento da segurança da navegação ou risco de poluição hídrica".
Na mesma reportagem, o Inea informou que só atua em caso de acidente de derramamento de óleo ou outros produtos nocivos ao meio ambiente e atribuiu a responsabilidade pelas embarcações abandonadas a seus proprietários, "independentemente do estado de conservação".