Profeta Gentileza gera uma indústria pirata
Marcelo Migliaccio, Jornal do Brasil
RIO - Gentileza está na moda. Não a ação nobre, distinta ou amável , como define o Dicionário Aurélio, mas a obra de um profeta que deixou em pilastras de viadutos e muros cariocas suas mensagens para um mundo melhor. Agora, a obra do artista visionário Gentileza virou um grande negócio que não paga direito autoral algum aos herdeiros vivos de José Datrino (1917-1996), o dono de uma transportadora que, de uma hora para outra, em 1961, decidiu abandonar tudo para pregar a fraternidade.
A gente fica triste. Ontem mesmo, minha neta viu até chinelo à venda em Vilar dos Teles com a frase e a letra que ele fazia lamenta Maria Alice Datrino, 66, uma das filhas do profeta. Estão usando o nome dele, o tipo de letra, tudo. No shopping de Madureira tem muita camisa à venda.
Apesar da indignação, Maria Alice, Vilma, Antonia e José Carlos não fizeram nada para fazer valer os direitos do pai.
Nosso mal foi não ter patenteado. Deve ser muito caro, a gente não tem condição resigna-se Maria Alice, que vive da administração de um pequeno bar em Guadalupe (Zona Norte do Rio).
Para o advogado e professor de ética e legislação publicitária da Escola Superior de Propaganda e Marketing, Fernando Monteiro, a família tem direitos sobre todos os produtos comercializados, mesmo sem ter registrado a patente.
Por analogia, com base na lei 9.610, que rege os direitos autorais, a exposição pública dos escritos deixados pelo Gentileza nas ruas tipificam a criação intelectual dele. Acho que quem usa aquela frase, com aquelas cores e aquele tipo de letra está usurpando o direito autoral.
Fernando diz que já viu até cangas à venda em Copacabana (Zona Sul). Uma delas foi comprada na semana passada pela estudante Anetti Figueiredo, 16.
Não sabia que não pagam nada à família! espanta-se Anetti. Se eu soubesse, acho que não compraria.
A professora de inglês Gisele Matheus, que comprou uma camiseta com os dizeres Gentileza gera gentileza por R$ 10 numa lojinha da Rua da Alfândega, também se surpreendeu.
Tenho pena, mas este é um país de oportunistas mesmo. Só que eu não vou deixar de usar porque a família dele não patenteou.
Professor de artes da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor do curta-metragem Porr gentileza (2002), além de uma tese, dois livros sobre o andarilho, Leonardo Guelman lamenta.
A inventividade gráfica dele é um domínio autoral. O pior é que essas camisetas são feitas em fundo de quintal, vendidas no mercado informal. É uma questão ética complicada, não sei como regular isso.
Nem todo mundo, porém, se aproveita do legado de Gentileza. A Rede Globo de Televisão, por exemplo, pagou à família pela caracterização do ator Paulo José como Gentileza na novela Caminho das Índias.
Eles pagaram mais ou menos uns R$ 3 mil para cada um dos filhos diz Maria Alice Datrino.
Família chegou a internar Datrino, que pode virar filme
Maria Alice Datrino conta que sua família ficou chocada quando José, o pai, após um encontro de negócios em casa, correu para o quintal, soltou todos os passarinhos das gaiolas e começou a tomar uma espécie de banho de descarrego na lama, gritando que sua vida mudaria a partir dali.
No início, minha mãe não aceitou aquilo, e pensamos que ele tinha ficado louco conta a filha mais velha. Meu pai chegou a ser internado umas três ou quatro vezes e levou até eletrochoque, mas um médico disse para a gente que ele não era louco e aquilo que ele fazia era uma coisa muito bonita.
Depois disso, os filhos aceitaram as constantes viagens de Datrino pelo Brasil para suas pregações.
Lembro dele sempre sentado na cozinha, escrevendo, pintando os cartazes. As viagens eram com passagens doadas pela Rodoviária Novo Rio, onde todos já o conheciam por causa das pinturas nas pilastras diz Maria Alice.
Recentemente, ela recebeu uma carta do cineasta paulista Jean Carlos Szepilovski, autor do documentário Ele é o espetáculo Uma homenagem a José Vasconcelos (2009), que pediu permissão para fazer um filme sobre a vida de Gentileza.
Ele disse que ainda estava correndo atrás de verba e que o projeto é para daqui a uns três anos, mas nós ainda não liberamos nada conta.