Agricultura familiar e meio ambiente
Sou, com orgulho, filho de agricultores familiares. Meus irmãos mais novos, Elma e Marino, junto com mamãe Lúcia, trabalham na roça. Todas as quartas-feiras e sábados vendem o que plantam e produzem na Feira do Produtor. Fui criado cercado por árvores e natureza desde sempre. Ao lado de casa, Vila Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, um bosque enfeita o ambiente. Lá, crianças, íamos fazer piqueniques, quando tios, tias e suas enormes famílias visitavam a avó Gertrudes. Fazíamos uma limpeza geral, abrindo corredores até o centro do bosque, onde um taquaral imponente dava sombra. Um pinheiro, que infelizmente morreu de velho, servia seus pinhões no inverno, que cozíamos ou assávamos na chapa quente do fogão a lenha. Nos fundos do bosque, uma fonte fornecia a água para os animais. A cisterna recolhia a água da chuva e provia os humanos.
Em 2014, estou secretário executivo da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo). Leio a manchete de um jornal do Sul: Uso de veneno cresce três vezes mais do que lavoura – Em cinco anos, área plantada aumentou 6%, enquanto venda de agrotóxicos subiu 22%. Gaúchos usam quase o dobro da média nacional. Segue a matéria: “O alerta de ambientalistas e entidades ligadas à saúde sobre o risco maior de químicos na agricultura é sustentado por dados. Segundo estatísticas de safra do IBGE e de comercialização do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), nos últimos cinco anos a venda de agrotóxicos subiu 22,1%, três vezes acima do crescimento da área cultivada. Se comparado ao avanço da produtividade, é quatro vezes maior, indicando abuso na aplicação dos produtos” (Zero Hora, 25/11/2013).
O Brasil é o segundo maior consumidor de agrotóxicos do planeta, um pouco atrás dos EUA. Entre os 50 tipos de agrotóxicos mais utilizados nas lavouras brasileiras, 22 são proibidos na União Europeia. Segundo o Observatório da indústria de agrotóxicos da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na última década o consumo de defensivos disparou no país. De 2001 a 2010, o faturamento da indústria do setor aumentou 215%, enquanto a área plantada subiu 30%. Para Victor Pelaez Alvarez, coordenador do observatório, “estão usando de forma preventiva. É como fazer quimioterapia para prevenir o câncer”.
2014 é o Ano Internacional da Agricultura Familiar, Camponesa e Indígena (Aiaf). O Comitê Brasileiro do Aiaf fez um plano de trabalho, com objetivos, avanços e desafios:
- Difusão e implementação das diretrizes voluntárias sobre governança responsável da Posse da Terra, dos Recursos Pesqueiros e Florestais no Brasil;
- Elaboração, em diálogo com os movimentos sociais e órgãos relacionados, um Plano Safra para os Biomas Amazônia e Cerrado, adequando os instrumentos e políticas às características e ao padrão de uso e gestão dos recursos naturais pelos extrativistas, povos e comunidades tradicionais e à consolidação da produção sustentável;
- Elaborar e implementar um programa dirigido ao desenvolvimento do extrativismo com a adequação dos instrumentos às especificidades de cada bioma;
- Aprofundar e implementar o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Brasil Agroecológico -, lançado pela presidenta Dilma Rousseff em outubro de 2013;
- Criação e efetivação de um Programa Nacional de Redução de Uso dos Agrotóxicos, como previsto no Brasil Agroecológico (aprovado em agosto pela Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e em apreciação pelo governo federal).
A agricultura familiar, camponesa e indígena é parte fundamental na construção de um Brasil Agroecológico. A Agroecologia é ou pode ser a base, o fundamento de uma nova utopia real. Utopia que aponta horizontes a serem alcançados. Real porque com os pés no chão da vida e da realidade.
Leonardo Boff, falando da ecoteologia da libertação, ecologia como grito da terra e grito dos pobres, disse no Congresso Brasileiro de Agroecologia: “Estamos num momento crítico da história da Terra e da Humanidade. Precisamos fazer uma escolha. Ou cuidar de nós e dos outros, ou arriscar em destruir a humanidade. A agroecologia é um novo começo com outro olhar: ver a Terra como nossa Mãe. A centralidade é a vida humana. A economia e a política devem estar a serviço do sistema vida. Somos chamados a irradiar como estrelas”.
A agricultura familiar, camponesa, indígena, extrativista, ribeirinha, quilombola é responsável por 70% dos alimentos que chegam à mesa de brasileiras e brasileiros. O cineasta Sílvio Tendler, autor dos filmes O veneno está na mesa 1 e 2, disse, quando do lançamento do segundo filme: “Não tem sentido você construir uma economia baseada na destruição da natureza. Isso não é economia. Isso é catástrofe. Você criar um modelo econômico perverso, isso não é o país que a gente está construindo. Eu acho a agroecologia fundamental como forma de produção econômica, social e de desenvolvimento”.
Estamos em tempos de pensar a vida, o futuro, o planeta terra, a humanidade. O papa Francisco está preparando uma encíclica sobre ecologia e meio ambiente, sobre o tema da Terra como casa da humanidade, uma ecologia centrada no ser humano. “A Amazônia deve ser desenvolvida, sem dúvida, mas sem perder sua vocação de ser um grande presente da natureza para toda a humanidade”.
O sociólogo Pedro Ribeiro aponta que “a consciência planetária é um fenômeno recente. Começa a ganhar forma no final do século 20. Este tipo de consciência é algo novo e diferente no pensamento, da cultura, da ciência e dos valores, o que aponta para um novo paradigma de civilização ocidental. A consciência planetária propõe uma relação de igualdade entre os humanos e a totalidade dos componentes do planeta Terra, e visa a repensar a relação entre o ser humano e a natureza, e para isso torna-se necessário ir além da ciência produzida pelo Ocidente, sem, contudo, menosprezá-la”.
No lançamento do Brasil Agroecológico, a presidenta Dilma Rousseff falou: “Em todo mundo há uma coisa acontecendo: a consciência cada vez maior da importância da agroecologia, da agricultura orgânica e do acesso e proteção, não só dos alimentos, mas também da água. Tem a ver com aquela consciência que encontramos na Rio+20, que levou a gente a construir a frase: é possível um país crescer, distribuir renda e incluir. E é possível que esse país seja um país que conserva e protege o meio ambiente. Por isso, vamos trabalhando juntos, vamos lutar por uma agricultura sustentável e garantir que esse projeto, o Brasil Agroecológico, seja uma conquista e uma vitória nossa”.
Estou com dom Guilherme Werlang, bispo de Ipameri, Goiás, que disse numa Romaria da Terra no Rio Grande do Sul: “Tem gente que, quando mexe na terra, diz que sujou as mãos. A terra não suja as mãos de ninguém porque ela é santa, como Deus afirmou a Moisés. A terra só será suja quando nós, seres humanos gananciosos, a sujarmos com veneno, agrotóxicos, plásticos, poluições das mais diversas. Nós, infelizmente, temos o poder de sujá-la, de prostituí-la e mesmo de matá-la. A palavra hoje é: coragem, sonho, esperança. O mundo poderá ser o Paraíso sonhado por Deus no ato da criação” (*Publicado em Amazônia, nº44, 2014).
* Selvino Heck, assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República, é também secretário executivo da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo).