Enfim, acabou a espionagem!
Desnudar o conteúdo das informações reservadas da diplomacia serve aos conflitos e às guerras
A coerência é uma virtude que exige solidez de princípios. Tá bom, eu sei que isso é mercadoria rara no ambiente da política e que seria uma impiedade cobrá-la do presidente da República. Afinal, ele mesmo se designou metamorfose ambulante, dispensando-se de compromissos consigo mesmo. Não nos surpreendamos, então, quando se encrespa e arrufa além do limite do ridículo com a deposição constitucional do hondurenho Manuel Zelaya, mas se relaciona aos abraços e amassos com os maiores ditadores do planeta.
Pensando melhor, corrijo-me. A incoerência de Lula admite exceções. Seu antiamericanismo, formado na cultura esquerdista do sindicalismo brasileiro, é monolítico. É por causa desse antiamericanismo que demonstra tanta afeição por Fidel Castro e Hugo Chávez. É por causa dele que, de modo intempestivo, saiu em defesa de Julian Assange, criador do site Wikileaks. É por causa dele que o governo brasileiro se omite perante as terríveis violações de direitos humanos no Irã. O governo do Irã tem ódio dos norte-americanos? Estamos com ele. O Wikileaks atingiu a diplomacia ianque? Viva o Wikileaks!
Admitido esse ponto, retornamos à velha incoerência. Ao longo dos oito anos de mandato, Lula sempre deixou claro seu desejo de controlar a imprensa e ensaiou maneiras de o fazer, usando o eufemismo do “controle social da mídia”. Mas argumenta em favor de Assange com base na liberdade de informação. Imagine a indignação do nosso presidente se o Wikileaks, um dia, se dedicasse à produzir ecografias do ventre de seu governo!
E isso nos traz ao tema central deste artigo. Como devemos encarar a atividade do Wikileaks, e como ela se relaciona com a liberdade de informação? Parece bastante claro que tal liberdade não se confunde com concessão de direitos à espionagem. Tampouco se afirme, como tenho lido por aí, que o Wikileaks “não tem o dever de guardar segredos de Estados soberanos”, porque isso é claro sofisma. O fato de que corresponde aos governos o dever de proteger seus segredos não concede ao Wikileaks o direito de os devassar por vias diretas ou oblíquas. E mais, se ao jornalismo investigativo se conceder a prerrogativa para penetrar e divulgar segredos de Estado, informações sigilosas e conteúdos relativos à segurança das nações, todos os espiões que atuam no setor público requererão credenciais de imprensa e total imunidade para suas ações. Ademais, é ingênuo supor que qualquer conteúdo de interesse público possa ou deva ser publicizado porque, se assim fosse, o grampo telefônico deveria estar liberado e todos os gabinetes, inclusive o de Lula, deveriam ter transmissão de áudio e vídeo para um telão no meio da praça. Por fim, desnudar o conteúdo das informações reservadas da diplomacia não serve à diplomacia. Serve aos conflitos e às guerras. Mas é pedir demais ao presidente que abandone seu antiamericanismo em favor de um raciocínio lógico.
Além de empresário, Percival Puggina é arquiteto, escritor, articulista de Zero Hora e outros jornais, autor de ‘Crônicas contra o totalitarismo’, ‘Cuba, a tragédia da utopia’ e ‘Pombas e gaviões’ e titular do site www.puggina.org.