O episódio do mensalão como marco histórico 

Por Iraci del Nero da Costa* 

Em vez de aniquilar o governo petista, o episódio do mensalão projetou-o “para a frente e para o alto”. Tal impulso resultou, de fato, da utilização imediata por parte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva do programa assistencialista herdado do governo Fernando Henrique Cardoso, transformando-o em verdadeiro coronelismo governamental. Na verdade, o impacto gerado pela aludida crise revelou àquele hábil presidente – dado o pronto e incondicional apoio recebido de milhões de miseráveis, que já contavam com o auxílio propiciado pelas práticas assistencialistas oferecidas pelo Estado – a imensa potencialidade política dos programas de ajuda aos mais carentes. Fechou-se, assim, a equação político-econômica cujo perfil já vinha se desenhando desde o início de seu governo; destarte, verificou-se ser possível garantir-se, com algo como 0,4% do PIB, a  aprovação e a compra do voto de milhões de desvalidos interessados, sobretudo e compreensivelmente, em receber uns poucos trocados de que tanto necessitam para viverem menos indignamente. Deu-se, assim, a manipulação política de uma oportuna ação de caráter assistencial, a qual conheceu o alargamento de seu campo de abrangência e passou a receber atenção redobrada no discurso presidencial.

Luiz Inácio Lula da Silva estendeu às camadas mais desprotegidas de nossa população a degradação política e ideológica, que, marca secular da elite política e econômica do Brasil, a pouco e pouco espraiou-se pelos demais segmentos socioeconômicos da Colônia, depois nação. Encerra-se, dessa maneira, mais um ciclo de nossa história, pois se pode afirmar achar-se toda a nossa população engolfada pela degeneração política em sua forma de pensar, de agir e, sobretudo, de votar. Na realidade, a camada mais despossuída do eleitorado já conhecia tal modo perverso de agir, pois votava por interesse imediato e pessoal. A novidade introduzida por Luiz Inácio Lula da Silva foi a de substituir os inúmeros “coronéis” de sempre pelo apoio ao seu governo e a si mesmo como líder carismático. Os seus sucessores na Presidência da República certamente adotarão postura semelhante, de sorte a chamarem para si tal apoio e tais votos. 

Político rasteiro, porém sagaz, utilizou-se do coronelismo governamental para safar-se, pessoalmente, dos crimes e falcatruas perpetrados por seus mais chegados ministros e auxiliares. Se é difícil aceitar que tais perversões não eram de seu conhecimento, muito fácil é admitir a ideia de ter sido ele o responsável pela compra de milhões de votos, aos quais deveu-se sua reeleição e que propiciaram a eleição de sua sucessora. 

Encerra-se um ciclo, e abre-se outro sobre o qual pouco se pode falar, pois não é possível distinguir por quanto tempo viveremos dominados pela possibilidade aberta ao presidente da República de comprar, mediante práticas assistencialistas de caráter clientelístico, a própria reeleição ou a consagração de um seu apaniguado qualquer. 

Em face desta última postulação, independentemente das resoluções do Supremo Tribunal Federal quanto aos implicados no caso, o assim chamado mensalão permanecerá para sempre como marco histórico da vida política brasileira. Continuaremos, pois, como avançado acima, a sofrer a influência desse malfadado fenômeno de corrupção que esgarçou ainda mais as precárias relações políticas e partidárias há tanto vigentes entre nós.

* Iraci del Nero da Costa é professor livre-docente aposentado da USP. - idd@terra.com.br