União poliafetiva
Evento ocorrido no município paulista de Tupã teve o condão de desafiar e desassossegar parcela da população brasileira. Um homem e duas mulheres foram ao Cartório de Notas da cidade oficializar, mediante escritura pública, união afetiva que se mantém, há três anos, na mesma residência.
Há tantos modelos de relações afetivas quanto de peculiaridades da pessoa humana. Conhecimento de fácil constatação, mas que não se presta à anuência pacífica ao tratar de situações atípicas que desafiam dogmas há muito consolidados. A reformulação sócio-jurídica que as entidades familiares têm experimentado nas últimas décadas não as tornou imunes aos preconceitos e comportamentos de resistência, embora hoje se apresentem libertas das amarras da exclusividade conjugal há séculos impostas pela Igreja.
No universo das composições de famílias, conceitos juridicamente sedimentados e a injunção da monogamia ainda exercem peso considerável na idealização e na formação dos vínculos. A extensão dos seus reflexos sociais, religiosos e jurídicos faz esquecer que o dogma da monogamia não é princípio jurídico aplicável como dever às circunstâncias eleitas pelos protagonistas que dela prescindem em entidades familiares, a exemplo do companheirismo, da simultaneidade conjugal e da união poliafetiva ou estável concomitante.
À família contemporânea tem sido conferido status de formadora de personalidade dos seus membros, função indissociável do fundamento jurídico da dignidade da pessoa humana, e do respeito e proteção à liberdade de escolha dos cidadãos, princípios caros ao Estado democrático de direito. Portanto, a deferência ao pluralismo, uma das marcas das constituições republicanas, não permite ao Estado laico interferir na vontade de membros de entidades ou arranjos familiares que auxiliam a concretizar a norma de proteção à pessoa.
O livre-arbítrio expresso na declaração de vontade de constituir união estável concomitante, dotada de status jurídico de sociedade patrimonial, não deveria ser motivo de celeuma em vista de não enfrentar óbices do ponto de vista da Constituição federal e do Direito Civil. Não há proibição ou sanção em expresso. E, embora o poliafeto não receba a proteção do Direito de Família – família como entidade formada por duas pessoas –, seus adeptos eventualmente poderão pleitear, na esfera cível, indenização por serviços prestados ao longo do tempo de convivência, divisão de bens em caso de separação e morte, entre outros direitos.
A importância do pioneirismo do registro da escritura pública de união poliafetiva não se cinge apenas a destacar a possibilidade de proteção das relações não monogâmicas, mas a buscar sua inserção entre as entidades familiares acolhidas pelo ordenamento mediante solução oriunda do Judiciário ou do Legislativo.
Antes de atirar pedras de moralismo estéril, deveríamos reexaminar nossos preconceitos e ter em mente que o ordenamento jurídico brasileiro se constituiu como instância protetora, e não censora moral das escolhas dos modelos de relações afetivas dos cidadãos. Portanto, é razoável confiar que o debate principiado acerca da inserção e das repercussões sociais de modelos familiares atípicos aponte as fronteiras que a sociedade pretende fixar em relação à proteção jurídica do Estado. Já o fez em prol da união estável e da família homoafetiva.
Nestes tempos em que muitos recusam as diferenças ou fingem não ver o que salta aos olhos, não custa lembrar a lição do civilista francês George Ripert: “Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o direito”.
* Erick Wilson Pereira é doutor em direito constitucional pela PUC/SP.