O elogio da mestiçagem
Em palestra sobre os noventa anos da Semana de Arte Moderna, na Universidade Estácio de Sá, campus Niterói, aos alunos dos cursos de letras e pedagogia, a convite da professora doutora. Marcia Lisbôa, asseverei que, após o manifesto de revisão estética a partir de um conceito de nacionalidade que não se coadunava ao proposto pelo ideário romântico, instaurava-se a modernidade em um país periférico em processo de industrialização. Destarte, observei-lhes que as reivindicações dos modernistas de 22 desaguariam no esboço de uma obra literária, que se pretendia interpretar o espírito de uma brasilidade que, supostamente, o ficcionista Machado de Assis não intentara ao rascunhar Memórias póstumas de Brás Cubas.
Eis que surge, em 1928, a obra Macunaíma, de Mário de Andrade. O subterfúgio de retórica obrigou-me a utilizar-me deste herói sem nenhum caráter que intitula o livro, para discorrer sobre os reflexos culturais que se bifurcariam por duas criaturas que, sociologicamente, o antecederiam por cronologias e heroísmos: a selvagem ameríndia Iracema (Mãe-pátria) e o caboclo Jeca Tatu. No cenário político, cabe enfatizar que nasceria uma terceira aparição épica que, diga-se de passagem, em popularidade e fabulação de enredo, suplantaria a virgem dos lábios de mel e o caipira do Vale do Paraíba – Luiz Inácio da Silva. Neste contexto, sem esvaziar a originalidade de Macunaíma e Lula no tocante ao processo de síntese étnica, salienta-se que o conto Urupês, de Monteiro Lobato, já havia acenado com as consequências da miscigenação representada pelo Filósofo da Lei do Menor Esforço (Jeca Tatu), a posicionar-se de cócoras diante da prosperidade de uma civilização a se anunciar “no Hemisfério Sul da América num claro instante”, conforme diria Caetano Veloso.
A impossibilidade de se deflagrar o progresso da alvissareira nação tupiniquim, mediante composição racial entre o indígena colonizado (Iracema) e o branco colonizador (Brás Cubas), iria reforçar o discurso integralista apto a acusar a mestiçagem como crucial elemento de anacronismo do projeto republicano, que se recusaria a reconhecer o protótipo da gênese de um país no binômio Jeca Tatu / Luiz Inácio da Silva. O que nos inspiraria a alterar o dito popular tão apreciado pelo descobridor da Pauliceia Desvairada, paca, tatu, cotia, Lula não...
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, o caipira Felizardo, funcionário do Sítio Sossego, denunciaria a presença do imigrante europeu, que "embranquecera" o desafortunado Éden brasilis, ao mesmo tempo em que se posicionava como exemplo de marginalização, segregada pelo período pós-colonial: “– Terra não é nossa... E frumiga?... Nós não têm ferramenta... Isso é bom para italiano ou alamão, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...”. Isto porque, nos primórdios do século 20, se propiciara a exaltação do caboclo como herói nacional em substituição ao índio-herói. Porém, a partir de analogias atemporais entre Jeca Tatu e Luiz Inácio se constataria que, ao contrário, em suas trajetórias afloram vícios e mazelas, a preguiça, o caiporismo, a inaptidão ao trabalho etc. Conquanto seja eleito presidente da República, não se defronta com o esboço de sertanejo que Lobato se apropriara de Euclides da Cunha, n’Os sertões.
A esta característica peculiar se unirá a celebração narcísica às avessas apontada por Nelson Rodrigues – a síntese das três raças formadoras do povo brasileiro – ao se delinear a alegoria mítica a conjugar-se pela composição macunaímica. O herói que, de preto retinto brotado do ventre da índia da tribo tapanhumas, se tornaria um lindo príncipe branco se originaria da necessidade de procriação ao artifício de libertinagem, de modo a afirmar que se constrói uma nação por sobre o ideário da miscigenação?
A resposta vem a ser o surgimento do império latino-americano a se promiscuir (e prosperar!) como se a definir códigos e regras a acenar aos perós e caraíbas, com o arco e flecha da guerreira Iracema; com a morbidez congênita de Jeca Tatu e com a lábia ancestral de Luizs Inácio Lula da Silva,
que se prefigura por intermédio da representação de uma pantomima surrealista a se equilibrar por sobre o refrão Ai, que preguiça!...
* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco