A criança e a invenção da vida
Quer ver duas coisas muito valorizadas dentro do nosso jeitão de enxergar o mundo? A velocidade e a genialidade. E aí faço uma pergunta: mesmo com a informação veloz ao alcance de um clique, quantos de nós somos mais geniais do que, por exemplo, Leonardo da Vinci e Shakespeare? Diz a lenda que nem internet discada eles tinham.
Outra pergunta: você ficaria mais feliz se lhe chamassem de gênio ou de esforçado? Qual adjetivo deixaria você mais envaidecido, enrubescido, corado nas bochechas, com vontade de fingir modéstia e dizer “ah, são seus olhos, bondade sua, nem tanto”?
Gostaríamos de ser gênios, desde que isso, claro, não nos cansasse a beleza.
Alguma coisa está entranhada no nosso modo de ver a vida e que valoriza essa qualidade gratuita, um suposto dom recebido desde o útero por causa de uma combinação misteriosa de espermatozoide e óvulo banhada de hormônios gente boa da melhor qualidade. Quando alguém chama os filhos de gênios, é a vaidade dos pais que fala alto. Eles sorriem de orelha a orelha, com a seguinte legenda na testa: Fui eu que fiz. Esquece-se de que a inteligência é uma construção diária, feita de inúmeras ligações que se tecem devido à riqueza de repertório vivencial e cultural a que se é exposto. E a criatividade vai de mãos dadas nesse mesmo caminho.
Conforme crescemos, uma certa rotina nos corta as unhas, dá uma aparadinha nas asas, nos faz ter vergonha de pequenas ousadias. Quando percebemos – na verdade, não percebemos –, já perdemos nossa imaginação, as coisas são assim mesmo, só quero saber do final de semana, que as férias cheguem logo, e essa aposentadoria que não vem... E tudo isso sem querer envelhecer.
Então, pensando que as crianças formulam hipóteses das mais inusitadas até as conclusões mais convencionais, podemos dizer que elas estão simulando modos de entender, assimilar e inventar a vida. Por meio da simulação, antecipam experiências. O mundo está aberto, o peso das normatizações ainda não se abateu sobre seus ombros, há pontes diversas para encontros criativos em vez de muros impedindo acessos. Quando falamos em simulação, falamos em fingir uma situação como se fosse verdadeira. Esse é o sentido de brincar: simular, fingir. E, de fingir, vem a ficção. Não parece difícil concluir que os livros aparecem aqui como objeto dos mais importantes. Então, se a criança tem tudo isso e o adulto corre o risco de ir perdendo, o que fazer para manter a ousadia? Para não se envergonhar de ser um ponto fora da curva? Para ser imaginativo, criativo, sensível, inteligente? Uma das minhas apostas não está na rapidez do Google, nem no tablete de maçã mordida. E passa longe do sorriso dos modelos de cartão de crédito, que prometem a felicidade a cada compra.
É a leitura de livros de literatura.
A tecnologia dá tanto acesso fácil a tudo (e gosto disso!), mas temo que algumas capacidades fundamentais que só se conseguem com tempo e esforço estejam sendo deixadas de lado, como algo ultrapassado, velho, démodé.
Quem quer que seu filho seja criativo levante a mão. Vejo uma floresta de braços erguidos.
Então, que tal dar mais livros? Mas livros que não substituam o papel de educar dos pais. Nada de comprar aquelas histórias que ensinam a escovar os dentes, que dizem que não é para puxar o cabelo do irmãozinho, que querem fechar a possibilidade literária com um ensinamento adulto convencional. Também não dê livros que contenham imagens que apenas reproduzam em linguagem visual o que acabou de ser lido. As ilustrações compõem, junto com o texto, o papel de abrir possibilidades imaginativas e não de reforçar uma convenção e eliminar a imaginação das cenas e dos conflitos. Toda boa literatura colocará em cena um ou mais conflitos. Eles são positivos, fazem o motor do pensamento funcionar. Um livro que quer dar uma lição pronta e com ilustrações que apenas desenham o que está escrito equivale a esse monte de brinquedos que faz tudo sozinho e deixa a criança apenas como expectadora passiva, pedindo licença para o brinquedo poder brincar junto.
E não tenha medo ou vergonha se seu filho for chamado de esforçado. As pessoas verdadeiramente admiráveis que conhecemos ao longo da história, diferentes das celebridades de 15 minutos, souberam o valor do esforço. Nenhum Prêmio Nobel ficou esperando na cama a genialidade bater à sua porta. Eles dedicaram tempo, concentração, valorizaram a profundidade. O esforço não é vergonha, é condição fundamental para que possamos fazer algo significativo para o mundo, com conhecimento de causa e criatividade. Só a inteligência e a criatividade são capazes de produzir uma novidade significativa, muito além de badulaques que só servem para – que coisa terrível! passar o tempo.
* Cezar Tridapalli, escritor paranaense, recebeu o prêmio Minas Gerais de Literatura pelo romance 'O beijo de Schiller'.